Na sua saudação, D. Manuel Clemente agradeceu ao Papa as três encíclicas e o testemunho da urgência em vencer «as dificuldades levantadas à reflexão e ponderação – à cultura, propriamente dita – pela velocidade, para não dizer a vertigem, com que hoje nos podemos distrair de tópico em tópico sem definir nem aprofundar propriamente nada».
O cineasta Manoel Oliveira falou da relação da Arte com a religião, disse ser o Cristianismo pródigo em expressões artísticas, lembrou dois filmes seus em que inseriu a figura de um Anjo como sinal da presença divina na história do mundo, afirmou ser o Cinema a sétima arte, a mais nova mas a de maior influência, confessou a sua fé cristã que reconheceu como a raiz profunda da Europa e criadora de cultura, e pediu para ele e para os presentes a bênção do Papa.
Para quem pôde estar presente, o Papa sentia-se feliz naquele meio, era o seu ambiente.
2- No breve discurso, o Papa agradeceu a presença daqueles homens e mulheres como «alguns dos melhores protagonistas da realidade polifónica da cultura portuguesa», e dividiu o seu discurso em dois temas: a análise da cultura actual, e o diálogo da Igreja com as novas culturas.
Na análise da cultura actual, disse: vivemos num clima de grande «tensão» que por vezes assume a forma de «conflito» entre o presente e a tradição. É que «a dinâmica da sociedade absolutiza o presente, isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro».
Está aqui o ponto basilar do discurso do Papa: a paixão do mundo actual pelas suas conquistas técnicas, pelos seus sonhos, pelas suas aspirações, pelas suas fantasias, fixou-o em tudo o que seja de hoje, sem uma crítica, endeusado, absolutizado, com um desprezo por todo o passado e sem delinear o futuro, isto é, sem examinar se as fantasias presentes têm viabilidade no futuro. No caso português, o desprezo pelo passado significa o desprezo pelos valores cristãos que enchem a nossa história e sempre nos acompanharam nas descobertas, na arte, na literatura e na emigração; a paixão pelo presente, carregado de laicismo, significaria o desejo de não alterar nada, de não se converter. Seria o drama de um povo que perde a cabeça, que não sabe de onde vem nem para onde vai, e que perde a preocupação pela verdade, limitando–se a viver a sua opção. Tem algo de idolatria.
Perante isto, o Papa insistiu na necessidade de instaurar na Igreja o diálogo cultural. É uma proposta pastoral de grande importância. Na verdade, perante o desvio da cultura actual obcecada pelo presente, podíamos ser tentados a verberar essa doença como quem se empenha na extirpação de um cancro. Seria o caminho da velha apologética – condenar o erro. O Papa dá um salto para a frente e ensina que a Igreja tem de aprender a dialogar com as novas culturas, com essa mentalidade que muitos dos nossos contemporâneos assumiram como válida, e retoma no seu discurso as palavras de Paulo VI na encíclica sobra «a Igreja» e de João XXIII na constituição apostólica «Humanae salutis» acerca do Concílio Vaticano II: o diálogo.
Mesmo que aquela mentalidade sobre a cultura esteja viciada, é indispensável ouvir os seus sequazes, perceber as razões subjectivas por que aderem a ela, porque ninguém ama o erro como tal mas a verdade que nele julga encontrar. «Constatada a diversidade cultural, é preciso fazer com que as pessoas não só aceitem a existência da cultura do outro, mas aspirem também a receber algum enriquecimento dessa cultura e a dar-lhe aquilo que se possui de bem, de verdade e de beleza», diz o Papa, e lembra a esse propósito a capacidade portuguesa de, mercê do seu rico humanismo, saber conviver com todos os povos».
Este apelo de Bento XVI ao diálogo, parecem ousadas às pessoas de tendência geométrica, que não distinguem o «erro» e «o errado», o mundo das ideias e o mundo da pessoa: certamente que a realidade é só uma, mas cada um vê as coisas pelo seu ângulo e, enquanto o não ajudarem a ver o outro lado, ele não pode deixar de amar o que viu. O diálogo é para isso: para ver a perspectiva do outro e ajudá-lo a ver a nossa.
3- Na homilia no Porto, na manhã do dia 14, o Papa voltaria ao tema: «Temos de vencer a tentação de nos limitarmos ao que ainda temos, ou julgamos ter, de nosso e seguro: seria morrer a prazo enquanto presença da igreja no mundo que, aliás, só pode ser missionária, no movimento expansivo do Espírito. Desde as suas origens, o povo cristão advertiu com clareza a importância de comunicar a Boa Nova de Jesus a quantos ainda não a conhecem. Nos últimos anos, alterou-se o quadro antropológico, cultural, social e religioso da humanidade; hoje a Igreja é chamada a enfrentar desafios novos e está pronta a dialogar com culturas e religiões diversas, procurando construir juntamente com cada pessoa de boa vontade a pacífica convivência dos povos. O campo da missão «ad gentes» apresenta-se hoje notavelmente alargado e não definível apenas segundo considerações geográficas: realmente aguardam por nós não apenas os povos não cristãos e as terras distantes, mas também os âmbitos sócio culturais e, sobretudo, os corações que são os verdadeiros destinatários da actividade missionária do povo de Deus».
4- Este quadro da nova acção pastoral desafia padres e leigos. Para muitos praticantes, o objectivo pastoral ainda é unicamente arrebanhar pessoas para as meter na igreja, reduzir a fé à prática de actos religiosos. Não têm ainda um sentido de partilha de ideias. Isso verifica-se, por exemplo, na dificuldade de muitos jovens e pais cristãos em compreenderem o alcance da aula de Religião no ensino secundário como espaço de diálogo cultural, e, a troco de que já vão à Missa e têm aulas de ginástica ou de música ou explicações complementares, abandonam aquele espaço e a possibilidade de aí estabelecer um diálogo cultural com outros colegas. Pela mesma razão, raramente se vê a inclusão de actos culturais na actividade paroquial, reduzida a actos de culto.