Podemos dividir estes cem anos de República em três grandes etapas: de 1910 a 28 de Maio de 1926, o Estado Novo até Abril de 1974, e a Democracia nascida com a revolução de 25 de Abril desse ano.
Cada um desses períodos apresentou–se como um salto em frente em ralação ao anterior, a realização dos sonhos defraudados, a conquista da liberdade, o progresso efectivo. De modos diferentes, todos testemunharam que há sempre um romantismo em todas as revoluções humanas.
A religião, mormente a religião católica, nunca foi esquecida pelos arautos dos respectivos períodos: no primeiro como algo a abater, no segundo como algo válido mas a controlar, no terceiro como realidade a arrumar para a esfera privada.
2 – É, por isso, inevitável que os católicos tenham sobre cada um dos períodos a sua memória. Da minha parte, não vou descer a casos pontuais do comportamento de leigos e padres e bispos em cada um desses períodos. Houve de tudo em cada um deles: bispos, leigos e padres entusiasmados com a República, como o P. Luís Alves Pereira, orador oficial da festa republicana em Vila Real no domingo, dia nove de Outubro; mais modestamente o P. Augusto César de Carvalho, presidente da Câmara de Ribeira de Pena em 5 de Outubro, que levantou um simples viva «às novas instituições»; e mais exaltado o P. Henrique José da Costa, administrador do mesmo concelho em 1912, que percorreu algumas freguesias a fazer propaganda da República. Houve leigos, padres e bispos entusiasmados mais tarde com o Estado Novo; houve leigos, padres e bispos entusiasmados com a revolução de Abril.
No pólo oposto, houve leigos, bispos e padres descontentes com a República de 1910, como os arcebispos de Braga (D. Manuel Baptista da Cunha D. Manuel Vieira de Matos a que nós pertencíamos), e os padres P. Cerimónias, o P. Liberal Sampaio, o P. José do Espírito Santo, o P. Vitorino Reis, todos em Chaves; o P. António Cruz em Constantim e o P. Botelho em Vila Real; houve leigos, padres e bispos descontentes com o Estado Novo; e leigos, padres e bispos descontentes com a revolução de Abril.
De tudo há testemunhos em jornais e actas camarárias; sobre os dois últimos períodos há a acrescentar a gravação nas rádios e na televisão.
3 – Percorridos estes cem anos, percebe-se melhor a posição da Igreja perante a política em geral e a política partidária em particular.
A missão da Igreja ultrapassa por sua natureza a actividade política, pois tem em vista a salvação eterna que deve ser entendida fundamentalmente como a formação do «homem novo», abrangendo essa formação uma dimensão de eternidade e uma presença no mundo. Esse «homem novo» nasce e desenvolve-se numa especial relação de cada pessoa com Deus que se manifesta na relação com os outros homens. A ideia de um «homem novo» é o sonho de todos os grandes revolucionários, ansiosos de fazer surgir uma «nova ordem mundial», mas só Jesus Cristo foi capaz de gerar efectivamente esse «homem novo». Basta conhecer a história da civilização.
Como disse, a formação do homem novo cristão não o afasta do mundo, mas, pelo contrário, dota-o de critérios específicos de pensamento e de acção no mundo, consciente de que «o progresso humano pode contribuir em muito para aquela salvação», sem que ela se identifique com esse progresso, tornando-se sempre necessário distinguir o progresso humano da salvação cristã (GS 39)
Aquele empenho pelo progresso constitui uma obrigação para todos os cristãos, e, para o leigo católico, esse empenho pode, e às vezes deve, traduzir-se na militância política partidária. Todos os leigos que sentiram dever empenhar-se na luta política são dignos de estima. O que deve lamentar-se é o grupo dos que nem ontem nem hoje têm convicções nenhumas e andam sempre à procura do chapéu dos outros.
4 – Diferente dos leigos é o estatuto da hierarquia da Igreja (padres e bispos). Comprometidos no governo directo da Igreja, não podem militar na promoção e defesa de regimes nem de partidos políticos. Todavia, houve sempre clérigos apaixonados, faltando-lhes a capacidade de ver que todos os regimes políticos são prisioneiros do tempo e têm pés de barro.
Há casos, porém, em que a hierarquia tem de intervir abertamente na denúncia da acção política: quando o projecto político é destruidor do homem. Isso pode acontecer pela ideologia que sustenta a acção política (como foi o caso do nazismo e do marxismo e é o caso do laicismo militante) ou pelo descalabro real demonstrado nos factos. Em tais casos, a intervenção da hierarquia da Igreja é um exercício de verdadeiro amor ao próximo, mas desencadeia frequentemente sobre os seus representantes várias modalidades de martírio. Isso aconteceu em 1910, aconteceu durante o Estado Novo e aconteceu depois do 25 de Abril: nessas horas, os políticos atingidos (crentes e descrentes) apressam-se a gritar à Igreja que ela se deve reduzir ao culto e à sacristia.
5 – Por tudo isso, o sector mais delicado e polémico na relação da Igreja com o Estado foi sempre o Ensino, ou seja, o reconhecimento efectivo da liberdade escolar e da educação religiosa nas escolas do Estado.
Os Estados modernos falam sempre do estatuto da «separação» do Estado e da Igreja, mas, na realidade, portam-se como «donos» das famílias e da sociedade civil impondo-lhes a sua filosofia. Ora a sociedade civil e as famílias são anteriores e superiores ao Estado, seja ele monarquia ou república. Em 1910, invocando o perigo do regresso à monarquia e o estatuto da separação, a República eliminou o ensino religioso nas escolas; depois do 25 de Abril, invocando os direitos da laicidade e a dificuldade na distribuição dos horários, vem a acontecer o mesmo. Ora a laicidade ou neutralidade do Estado não lhe dá o direito de laicizar as famílias nem a sociedade civil. As escolas são um espaço público especial, não são um espaço público como as universidades nem como os tribunais em que o Estado age sozinho. As escolas básicas e secundara são espaços educativos profundamente ligados às famílias. E a liberdade escolar mais ampla – poder escolhe a escola sem sofrer mais encargos – continua a ser em Portugal uma ficção.
Por isso se pode dizer que, em Portugal, a República tem evoluído, mas não tanto como devia e é necessário.
Na sua viagem ao Reino Unido, o Papa repetiu delicadamente esta doutrina em Glasgow: «Há alguns que agora procuram excluir a crença religiosa do discurso público, privatizá-la ou descrevê-la como uma ameaça à igualdade e liberdade. Apelo em particular a vós, leigos, a serdes não só exemplos de fé no espaço público, mas também a introduzir e a promover no debate público o argumento de uma sabedoria e de uma visão de fé».
* Bispo de Vila Real
PS. No último texto sobre «A Menagem de Newmn» houve irregularidades nascidas da carência ou deslocação de letras, e uma de índole geográfica – situar Birmingham no «país de Gales», que o Papa não visitou. É o resultado de não vigiar suficientemente a transposição de frases do texto, do que se pede desculpa. A «mensagem», porém, mantém-se integralmente.