Também a Igreja católica está no Reino Unido organizada nesse esquema geográfico e histórico: os bispos da Escócia formam uma conferência episcopal, e os bispos da Inglaterra e do país de Gales, outra. Os católicos são uma minoria, cerca de cinco milhões entre mais de 50 milhões de cidadãos.
A visita de Bento XVI era uma visita oficial, incluía o convite da rainha que, na estrutura do Anglicanismo, é também a chefe dessa igreja. João Paulo II já havia estado no Reino Unido em 1982 mas somente a convite dos bispos. Apesar desse carácter oficial, o Papa pediu que o dispensassem dos actos honoríficos habitualmente prestados aos chefes de Estado: honras militares, jantares de gala, hospedagem em palácios oficiais.
2 – Até ao séc. XVI as Ilhas Britânicas formavam uma comunidade católica activa. Já então se falava do «catolicismo anglicano» como nós dizemos «catolicismo português», uma fé enraizada na cultura e no sentimento do povo. Quando estalou na Alemanha a revolta protestante, o rei de Inglaterra, Henrique VIII, escreveu um livro famoso em defesa da fé católica, merecendo o título de «defensor da fé». Mais tarde, por causa da impossibilidade de obter a declaração de nulidade do seu casamento para poder casar com uma senhora da corte, separou-se de Roma criando uma «igreja nacional» e nomeou-se a si mesmo chefe dessa «igreja anglicana», concedendo-se todas as dispensas, mas persistia em declarar que não era protestante, que professava o «catolicismo anglicano», dando um novo sentido a essa expressão tradicional.
Os séculos futuros retiraram desse esquema todas as consequências, multiplicaram-se as formas de anglicanismo, que se estenderam pelo mundo após os descobrimentos, e assim nasceu o que hoje se chama «confissão anglicana» com milhões de fiéis. Um historiador e teólogo inglês escreveu há anos que é difícil saber em que acredita um inglês e que moral pratica: tudo fica dependente da sua sensibilidade, da sua experiência, dos seus gostos, da sua reflexão, da sua subjectividade. Daí que surjam o casamento gay, a ordenação sacerdotal e episcopal de homossexuais e de mulheres, o divórcio, o barco do aborto, a eutanásia, e coisas similares.
3 – Foi essa sociedade fortemente secularizada que Bento XVI encontrou com manifestações típicas dessa cultura: os grupos gay, os movimentos feministas, agnósticos e ateus militantes.
Quem conhece a história religiosa e cultural daquele povo pôde sentir ali os sinais do velho empirismo inglês que gerou o positivismo actual: uma cultura marcada pelo experimental, pelo utilitário, pela economia, pelas vantagens comerciais. É da língua inglesa que «o tempo é dinheiro», e é da história económica dos ingleses o império das minas de ouro e de ferro, da metalurgia pesada, do mundo do petróleo e dos mares, da indústria química e das finanças; é dos ingleses o mundo da matemática, da física e da astrofísica e do evolucionismo; é dos ingleses a filosofia de Locke e de F. Bacon, de Bertrand Russell e do neo-positivismo, o deísmo e as lojas maçónicas e todo tipo de clubes.
E é também dos ingleses a célebre fleuma, um típico bom humor e, nos crentes, uma certa «ternura» piedosa muito diferente da euforia dos latinos e mais ainda dos latino-americanos. Lembrei–me disto ao acompanhar pela televisão a beatificação do cardeal J. H. Newman.
4 – Newman foi elemento preponderante do movimento anglicano de Oxfor. No séc. XIX em 1833 surgiu em Oxford, no seio do Anglicanismo, um movimento universitário contra o liberalismo teológico que continuou depois em busca das raízes do primitivo Cristianismo que pudesse servir de teste para aquilatar a fé cristã. Desse grupo faziam parte grandes intelectuais anglicanos, entre os quais Pusey, Henrique Manning e João Henrique Newman, que acabariam por se converter e entrar na Igreja católica. Eram de temperamento muito diferente, sendo Newman o mais místico, suave, respeitador da consciência, como espelha o seu retrato oficial. Nascido em Londres (1801), seria recebido na Igreja católica em 1845, ordenado presbítero em Roma, regressando à Inglaterra onde fundou em 1848 o Oratório de Birmingham como lugar de formação e de oração. Pouco tempo antes de morrer, em 11.8.1890, foi feito cardeal. A sua conversão abalou profundamente a sociedade do seu tempo.
É elucidativo o percurso deste homem: sentindo o escândalo da divisão das igrejas cristãs e a pulverização gradual da doutrina cristã, dedicou-se ao estudou dos primeiros séculos da Igreja em busca da verdadeira fé cristã. Cedo se apercebeu que essa fé antiga coincidia com o que ensinava a Igreja de Roma. Mas Newman não gostava do rosto da Igreja romana no séc. XIX, e isso desencadeou na sua consciência a luta entre a inteligência e a sensibilidade, entre a lógica e o coração, entre o apelo à conversão e a sua tradição anglicana. Conta-se que, numa viagem pelo Mediterrâneo, passou perto da Itália e sentiu calafrios só em pensar na hipótese de um dia ir a Roma rezar com o Papa. Nesse estado de alma escreveu o poema que dá pelo nome de «Luz, terna, suave, no meio da noite, leva-me mais longe/ Não tenho aqui morada permanente/ Leva-me mais longe». Essa luz suave era o apelo interior da consciência, que ele temia o levasse longe demais. Para esclarecer seu percurso perante os amigos, escreveu em 1864 a «Apologia pro vita sua», uma das mais famosas autobiografias de todos os tempos, e a «Gramática para o assentimento» (1865).
Newman é o exemplar perfeito da alma britânica, guiado pela experiência interior, capaz de chegar à fé católica, uma fé organizada, objectiva. Foi seu lema «cor ad cor loquitur» (o coração fala ao coração). Newman faz lembrar outro santo inglês do séc. XVI, um leigo, pai de família, S. Tomás Moro, o chanceler de Henrique VIII, que, pela obediência à consciência, se negou a assinar o documento do rei para dissolver o seu casamento. «O rei conte com a minha total lealdade para o serviço da Pátria, mas não me peça que actue contra a minha consciência, porque só tenho uma alma».
Durante a Eucaristia da beatificação celebrada em Birmingham, diante do retrato do cardeal J.H.Newman, de rosto largo e asceta, vieram-me ao pensamento algumas notas da história e da sensibilidade daquele povo: nos três volumes do altar, as três «regiões»; na madeira nua do altar, do ambão e da cátedra, a austeridade britânica; no belíssimo vitral atrás e por cima da cátedra, o sentido estético daquele povo; cátedra do Papa, o esboço da cruz celta; no desalinho dos cabelos brancos dos bispos e presbíteros, a sua origem nórdica; e na melodia de alguns cânticos, a tal ternura da piedade daquele povo, que também sabe cantar corais nas horas de júbilo.
Num mundo secularizado, individualista e ruidoso, imerso na sensualidade que invadiu os próprios clérigos, é actualíssimo o testemunho de humildade e fortaleza em obediência à consciência pessoal em busca da verdade.
* Bispo de Vila Real