Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2024
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A porta que não se fecha

Confesso-me católico, dos antigos, que até gostavam do latinório indecifrável, mas musicalmente mais doce do que o discurso cru de uma agreste língua portuguesa que terá alguma mais–valia, no dia-a-dia corriqueiro, mas que, na solenidade das aras onde os joelhos suportam a carga dos pecados que o resto do corpo lhes encomenda, soa a música […]

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Confesso-me católico, dos antigos, que até gostavam do latinório indecifrável, mas musicalmente mais doce do que o discurso cru de uma agreste língua portuguesa que terá alguma mais–valia, no dia-a-dia corriqueiro, mas que, na solenidade das aras onde os joelhos suportam a carga dos pecados que o resto do corpo lhes encomenda, soa a música desafinada. Sou, talvez por isso, um católico liturgicamente indisciplinado.

Não sei porquê, talvez porque o avançar da idade me aconselhe a que me aproxime sozinho do altar, tentando que a minha vez de falar com o divino não se atrapalhe com a fila concorrente dos que, com Ele, querem trocar umas orações, por uma Graça, entro mais vezes numa Igreja vazia do que quando ela abarrota de fiéis.

As multidões assustam-me, o burburinho agride-me o tímpano e não sei se a cordialidade com que os crentes se abraçam, lá dentro, se transmite cá fora. O mundo está cheio de gente que, atropelando as regras simples, cordiais e tão fáceis de cumprir, como a Palavra do Mestre nos solicita, ali, no meio da amálgama anónima e da palavra reconciliadora do sacerdote, dá, de amizade, a mesma mão com que, logo à saída, há-de fustigar o próximo. Triste liturgia, fraca fé dos que acham que o bem é exclusivo das quatro paredes de uma Igreja e que o mundo cá fora é outro mundo, onde poderão sacanear o tal próximo, com a certeza de que, no domingo seguinte, as quatro paredes sagradas do templo as há-de absolver, dando-lhes novas forças para as tropelias da semana que se segue.

Por estas e por outras, há muitos anos que a minha indisciplina litúrgica me aconselha a que entre numa Igreja amiúde e lá converse com Aquele que, há mais de cinquenta anos, me tem ouvido, com a paciência do Santo que é. Contudo, por muito estranho que pareça, mesmo aos olhos dos que até por aí andam a escrever que Cristo fala com eles, não tenho pejo em reconhecer que Ele também fala comigo. A bem dizer, e para que a verdade não se desvirtue, nunca lhe captei os decibéis da voz, mas sempre entendi o que Ele me quis dizer, na resposta às minhas dúvidas. É uma voz estranha, esta, a do Divino, porque não se ouve. É uma voz sem púlpito, sem a sonoridade hollywoodesca do Cecil B. de Mille. Mas é uma voz que bate nos ventrículos e aurículos da máquina que nos segura, que sobe até ao cérebro e inunda o raciocínio, dando-nos o conforto inolvidável de quem recebeu uma lição do mestre maior. Acima dele, não há que procurar. É por isso que, de cada vez que lá entro, no anonimato da minha solidão, acho que Ele terá mais tempo para aturar as maluquices que a minha vida estrambólica engendra.

Uma porta aberta, numa Igreja, não é só um convite a entrar. É, também, um convite ao convívio e a uma cavaqueira com alguém que nos deixa falar à vontade, que não nos interrompe, que nos ouve com a atenção de um santo (pudera!) e que, no final, nos deixa um conselho amigo, na consciência. E tudo isto, toda esta atenção, toda esta consulta, sem marcação prévia, sem taxa moderadora e sem fila de espera. A gente ajoelha-se e tem logo ali o Mestre disponível. Tomara o Serviço Nacional de Saúde ter esta eficiência!

No fundo, no fundo, sabemos que, ao entrarmos, já levamos a solução das nossas crises lavradas na nossa alma. Ele só as certifica. Mas talvez não seja por isso que lá vamos. O solitário e agredido homem de hoje precisa de ser ouvido, precisa de quem o escute, necessita de sentir que há alguém atento ao que o atormenta.

Entro, amiúde, numa Igreja, sem que lá se desenrole qualquer acto litúrgico. Entro lá, como se fosse a minha casa. E é. Porque preciso de falar com alguém. Falar com quem me sabe ouvir. Com quem nunca me desiludiu. E, depois, Ele está sempre à minha espera. Experimentem, porque se vão habituar. Nem precisam de marcar encontro. É quando quiserem.

Vocês nem sabem o que uma simples oração, no sítio certo, pode fazer por nós.

 

gouveiafrancisco@hotmail.com

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