– Sabes, estou muito preocupado. Eu estava acostumado à rapidez com que ele saltava dos assuntos jocosos para os sérios, mas agora o seu tom dramático preocupava-me. Além disso era a primeira vez que ele me tratava pelo meu primeiro nome e isso conferia às suas palavras um tom de intimidade chocante, uma seriedade quase pungente.
– Mas, doutor, preocupado com quê?
– Então você não sabe e não vê a tragédia que se aproxima depois do resultado destas eleições?
– Olhei para ele espantado. – Qual tragédia Dr. Silveira?
O meu tom era agora ligeiramente irónico e a revelação daquele perigo imaginário não me impressionava. O meu amigo doutor deu conta dessa ironia subjacente.
– Ah! A inconsciência desta gente! A ingratidão.
As suas palavras sibilantes começavam a divertir-me mas também a interessar-me. – Troque lá isso por miúdos, Dr. Silveira.
Sem fazer caso da minha interrupção, o Dr. Silveira continuou durante algum tempo naquele tom vago e alegórico que lhe era habitual. Aos poucos ia percebendo o seu pensamento mas resolvi deixar passar a tempestade retórica para insistir:
– Mas afinal que Apocalipse é esse que o doutor receia?
– A instabilidade política homem, a instabilidade que aí vem. Então não vê o risco que o país corre se não houver entendimento entre os vários partidos, ficamos à deriva, sem rumo, sem porto à vista.
–Dr. Silveira, as eleições são sempre de festa para uns e de tristeza para outros e isso é sempre o jogo da democracia. Cá por mim, tenho uma fezada de que tudo vai acabar em bem. Tenho fé, muita fé. A fé é a última âncora da vida.
– Não sei, não sei, mas há um partido que deixou tudo de pantanas. Vê lá tu que essa força política elegeu mais deputados do que todas as sondagens o faziam prever e o seu presidente imagina, quer fazer parte do governo, só que todos os outros partidos desconfiam do Homem porque fala muito e em altos berros. Dizem até que não tem uma única ideia para o país.
– Tenha fé Dr. Silveira porque a fé é um bom caminho para a sobrevivência da humanidade.
– Não sei, não sei, mas eu quase que adivinho, com a subida vertiginosa desse partido, cujo timoneiro é um tal Ventura, um sinal negro deste tempo, dos tempos próximos.
– Tenha fé, muita fé Dr. Silveira. A democracia é mesmo assim.
Já perto das onze, a Avenida estava vazia e os silêncios invadiam todos os espaços. Os cafés fechados e as nuvens no céu convidavam-nos a regressar a nossas casas. O Dr. Silveira ainda me caiu nos braços a soluçar convulsivamente sussurrando: “Estou preocupado”.