Terça-feira, 14 de Janeiro de 2025
No menu items!

A problemática da transmissão da fé (III)

1 - Pela terceira vez venho falar dos desafios postos à Igreja pelas mudanças sócio culturais, desafios que, de certo modo, são problemas de civilização. Aos três cenários já aqui apresentados, acrescento hoje mais três, constantes do caderno do próximo Sínodo sobre «a nova evangelização para a transmissão da fé»: o cenário económico, o cenário da investigação científica e tecnológica e o cenário político. A última campanha eleitoral e os comentários sobre a prevista trajectória do actual governo de Portugal podem ser sinais do conturbado mundo sócio político em que Portugal e toda a Europa estão envolvidos.

-PUB-

a) Cenário económico

Os dois modelos económicos que Europa experimentou durante o século passado foram, genericamente, o capitalista e o estatal. Isto é, as grandes fontes de produção da riqueza económica ou estão nas mãos de pessoas singulares e grupos de cidadãos, ou nas mãos do Estado. O primeiro, também chamado sistema de economia privada ou economia de mercado livre, baseia-se na iniciativa pessoal; o segundo, também designado colectivista, confia ao Estado a posse dos bens de produção e a gestão da riqueza produzida. O risco do primeiro é a busca do máximo lucro para os detentores dos meios de produção e do dinheiro; o segundo revelou-se historicamente incapaz de produzir riqueza e, consequentemente, nada tem para distribuir.

Resta aceitar o sistema de marcado livre, e, para evitar a tentação do abuso das forças de produção e dos poderes financeiros, construir um Estado forte que vigie, dependendo dessa vigilância formas de capitalismo mais violento, ditas neoliberais, e formas mais benignas. (Os saudosistas do sistema estatal apelidam todos os outros sistemas de capitalismo neoliberal e ultraliberal).

Actualmente, o mercado livre, apoiado em redes financeiras internacionais, saltou as barreiras de cada país, tornando mais difícil o seu controlo. Os conhecidos princípios de ética social que nos sistemas financeiros nacionais se dirigiam às pessoas singulares e que os Estados podiam vigiar, parecem abalados. Dessa ausência de um poder mundial de controlo se queixou o Papa na sua encíclica «A Caridade na Verdade». Foi essa falta de poder que deu origem à crise actual e continua a ameaçar o esforço das nações. Não valendo a pena sonhar com o regresso à economia estatal, como conseguir impor regras a esses grupos sem rosto?

b) Cenário da investigação científica e tecnológica

A ciência apresenta-se hoje inseparável da técnica, apoiando-se mutuamente. A ânsia pela eficácia técnica invadiu todos os sectores, desde os mecanismos da vida até ao espaço cósmico. Tudo o que é possível fazer-se tende a ser tomado como direito a ser feito. À essa dupla ciência-técnica pede-se tudo: a cura da doença, a melhoria da saúde, o conforto e o bem estar, a multiplicação rápida dos produtos e dos animais da terra, dos rios e do mar, a segurança na velhice e até o retorno à vida depois da morte!

A ciência assume-se como sucedânea da religião e alguns cientistas são portadores de um novo misticismo, de uma forma de sabedoria. Dir-se-ia uma nova versão de gnosticismo. Sonha-se com a organização mágica da vida, e por toda a parte aparecem religiões novas, as «religiões da prosperidade», formas terapêuticas de gratificação corpórea, do conforto e do bem-estar. Em tais «religiões» não se fala de pecado nem de arrependimento nem de perdão nem de eternidade, e as pessoas tornam-se alérgicas a esses temas constantes das religiões clássicas e, nomeadamente, da religião cristã.

Como apresentar aí a religião cristã, portadora da maior transcendência, a própria ressurreição? Que contributo pode a fé cristã dar a esse mundo?

c) Cenário político

Terminada a divisão do mundo em dois blocos (o soviético e o americano), intimamente ligados aos dois sistemas económicos já referidos, surgem diversos grupos de pressão: o «islâmico», o «asiático», o «europeu», o «africano», o «sul-americano» ao lado do «europeu» e do «americano. Esses grupos procuram alargar o seu raio de influência política e fazer constelações nos mecanismos internacionais. Tecnicamente, não hesitam em agredir a natureza se isso for útil às suas ambições económicas.

2 – Cada um desses cenários tece uma malha complexa que parece toldar a dimensão religiosa, interrogando-se o cristão como há-de viver a fé e o amor do próximo. Cada cenário pede uma reflexão concreta, que não pode ser feita aqui. Há, contudo, atitudes gerais que um cristão deve ter como indiscutíveis:

a. Evitar a perplexidade e o medo. As situações novas são sempre portadoras de algum nevoeiro e leva tempo a desvendar os seus apelos mais profundos.

b. Evitar cair na armadilha da defesa de uma «religião civil» como substituto da fé, fonte de entendimento comum e acessível a crentes e descrentes.

c. Evitar viver a vida diária «como se Deus não existisse», mas procurar manter com Ele uma relação íntima, pessoal. Para isso, a Igreja deve cultivar o rosto de «Igreja maternal e doméstica», próxima das pessoas, aproveitando a piedade popular, as grandes peregrinações, as celebrações da juventude e os novos movimentos da Igreja e, nessas celebrações de forte carga afectiva, ajudar as pessoas a raciocinar, fazendo a educação da fé dos participantes.

d. Ser inventivo, compreendendo que não é suficiente «fazer o que sempre se fez».

e. Na pregação ter em conta algumas regras básicas: falar a partir do que se vive (não do saber teórico), «iniciar» as pessoas na experiência cristã (na catequese e nos sacramentos), não se restringindo à informação intelectual, integrar a acção pastoral no ritmo da igreja diocesana, recorrer ao uso da Palavra de Deus e não aos lugares comuns da sabedoria dos homens, ter em conta a componente «Logos» (racionalidade da fé), fazer a «abertura ao mundo» (despertando para os problemas sociais) sem nunca esconder nesses contextos os temas clássicos do pecado, da conversão, da graça, dos novíssimos: há hoje outros pecados, ou melhor, há outros modos de cometer os mesmos pecados de egoísmo, de roubo, de sensualidade, de homicídio, de idolatria.

f. Agir com Alegria e Esperança teológica, cultivar o espírito de Pentecostes, e não viver apoiado somente em seguranças psicológicas e sociológicas.

3 – As enormes mudanças sócio culturais demonstram que se alterou o tabuleiro, mas os jogadores e as regras são as mesmas: o «próximo» que é preciso respeitar já não é só o vizinho do quintal do lado cujo rosto conhecemos mas o viajante da Net; a tentação do jogo não se restringe ao tasco da aldeia, mas estende-se aos jogos de certos depósitos; o abuso de falsos produtos não se limita à venda de ovos estragados no caminho da feira, mas ao exagero dos químicos no cultivo das hortaliças e na multiplicação de animais em cativeiro; de igual modo, a invocação do nome de Deus em vão não se faz somente na ida à bruxa da aldeia mas na criação dos misticismos técnicos. Numa palavra, a transmissão da fé não se faz repetindo gestos antigos, mas requer a leitura evangélica dos novos espaços e relações. É preciso aprender a situar-se.

 

APOIE O NOSSO TRABALHO. APOIE O JORNALISMO DE PROXIMIDADE.

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo regional e de proximidade. O acesso à maioria das notícias da VTM (ainda) é livre, mas não é gratuito, o jornalismo custa dinheiro e exige investimento. Esta contribuição é uma forma de apoiar de forma direta A Voz de Trás-os-Montes e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente e de proximidade, mas não só. É continuar a informar apesar de todas as contingências do confinamento, sem termos parado um único dia.

Contribua com um donativo!

VÍDEOS

Mais lidas

ÚLTIMAS NOTÍCIAS