Como havíamos noticiado, realizou-se na Casa diocesana de Vila Real a reciclagem teológica e pastoral do Clero, cujo tema foi «A República e a Igreja». A participação foi aberta às religiosas e leigos. Procurou-se fazer a reflexão teológica de um facto histórico com largas repercussões na vida da Igreja e sem intuitos polémicos.
O primeiro dia foi dedicado ao estudo dos factos históricos: a situação da Igreja nos últimos 150 anos da Monarquia (Regalismo e Liberalismo)
Igreja no final da Monarquia
O tema foi desenvolvido pelo Doutor António de Jesus Ramos, de Coimbra. Lembrou a intromissão oficial do poder político (régio) na vida da Igreja ao escolher e apresentar os candidatos a bispos e ao nomear os párocos e detentores de outros cargos eclesiásticos, ao impor a orientação doutrinária nos próprios seminários, e ao fazer a censura dos documentos dos bispos e do Roma. Daqui nasceu uma «igreja patrioteira estatizada, calada e muda». Tiveram aí um triste papel alguns padres, «os padres do Marquês» (de Pombal), os religiosos e os professores de Coimbra que seriam depois elevados ao episcopado, alguns deles maçons. Os grandes «inimigos» do poder político da época eram os jesuítas porque ensinavam que «o poder absoluto» (seja dos reis seja de quem for) é desumano e inaceitável.
Nesta paisagem medíocre houve, sobretudo depois de 1870 (com o Concílio do Vaticano I), alguns bispos mais afeiçoados ao Papa cuja acção pastoral se distanciou dos bispos palacianos. O povo continuava a sua vida devota mas lânguida («fiéis piedosos mas não convictos», dizia Ramalho Ortigão), sem vigor doutrinário nem litúrgico nem musical nem empenho social. Entre o povo aparecem os missionários populares. Entretanto, foram regressando algumas ordens religiosas e várias figuras se destacaram: na cultura o P. Himalaia, na literatura de análise religiosa social o P. Sena Freitas e o P. Santana, mantendo o primeiro uma acesa polémica com Guerra Junqueiro e outros escritores incluindo os da geração de 70, e o segundo uma discussão científica contundente com o médico Miguel Bombarda e outros positivistas; na formação da opinião pública os jornalistas católicos Gomes dos Santos e Manuel Abúndio da Silva, o primeiro um convertido vindo do anarquismo e o outro da linha legitimista. Duas teses se debatiam: a formação de um partido católico que fosse alternativa aos já existentes e rotativistas, ou a formação de uma «união dos católicos» para lhes dar formação de base e sem forma partidária. Os profissionais da política continuaram a moer o país até à exaustão. Em toda esta desorientação cultural, teológica e política, actuava a doutrinação maçónica difundida nas lojas das principais cidades e vilas e que recrutava gente em todos os meios, incluindo o clero.
Da parte de tarde, desse primeiro dia, estava programado o estudo de «a República em Vila Real», mas não chegou a fazer-se devido ao não aparecimento do orador.
Igreja na implantação
da república
O segundo dia foi dedicado ao estudo da «Lei da separação entre o Estado e as Igrejas», da autoria de Afonso Costa, publicada em Abril de 1911, tema desenvolvido pelo Doutor João Maria Seabra, de Lisboa.
Começou por lembrar que a República fora implantada em 5 de Outubro de 1910 com nítido carácter anticatólico, quando o normal seria que fosse antimonárquica. Aquela orientação veio-lhe exactamente do vírus maçon que, depois de ser antimonárquico até à morte do rei, se centrou agora no ataque à Igreja, sendo o anticlericalismo o traço de união dos republicanos. Tal anticlericalismo é bem expresso na legislação produzida até Dezembro, impondo o divórcio, a abolição dos dias santos e a educação religiosa nas escolas, o juramento religioso em actos públicos. É verdade que alguns bispos e padres (os que haviam sido promovidos pela política regalista e liberal) eram afeiçoados à monarquia, mas a instituição Igreja como tal não era e tinha inclusive grandes defensores do novo regime.
Foi esse espírito anti-igreja que inspirou a «lei da separação», publicada em 1911. Não é uma lei de separação das igrejas e do Estado, mas uma «lei de opressão e destruição da igreja católica», disse o orador, apoiado em historiadores recentes de vários quadrantes, incluindo os pertença maçónica. «Essa opressão manifesta-se sobretudo em três pontos: no não reconhecimento jurídico da Igreja nem de nenhuma instituição católica (seja seminário, seja paróquia, seja diocese); na instituição das «comissões culturais» (das quais não podiam fazer parte os párocos) e que administrariam as paróquias, sendo os párocos meros capelães sujeitos a essas comissões; as pensões prometidas pelo governo aos párocos, seus filhos e viúvas». Para estabelecer o quantitativo dessas pensões exigia-se ainda um julgamento público dos bens do padre! Na prática, «a Igreja deixou de existir juridicamente, a administração do culto foi entregue aos ateus (diz o historiador Rui Ramos), e os padres são publicamente humilhados no texto que regula as pensões», concluiu o orador.
«Foi esta tríplice humilhação que despertou muitos padres adormecidos e provocou a indignação unânime dos bispos, mesmo dos padres e bispos abertos à mudança de regime e nada afeiçoados à monarquia». «Bendita lei», desabafou o orador. A desobediência frontal e oficial do clero é que fez a separação da Igreja do Estado, diz João Seabra, pois «a lei escrita por Afonso Costa não separava nada, mas metia a Igreja debaixo do braço do Estado. Com algum humor, referiu que, ao aparecer em Fátima e mandar construir uma capela e fazer procissões sem licença, a Senhora desrespeitava a lei da separação de Afonso Costa.
Igreja e Concordata
Nesse mesmo dia, da parte de tarde, o mesmo orador fez a leitura do texto da nova Concordata de 2004 que é, na sua opinião, «um texto pouco feliz, cheio de armadilhas, sendo a pior delas a existência de três comissões para a execução e regulamentação da Concordata que, até hoje, ou não reúnem ou nem sequer existem».
O comentário mereceu diálogo da assembleia, alguma precisão e o estudo de casos concretos do fisco, da assistência religiosa hospitalar e prisional, e da leccionação das aulas de moral e religião.
O último dia foi dedicado ao «clericalismo e anticrelicalismo», mormente na sua expressão literária, uma vez que esse filão inquinou o fim de século XIX e o princípio do sec XX .
O perigo do clericalismo
O tema foi desenvolvido pelo Doutor Luís Alexandre Silva Pereira, de Braga, um leigo casado e pai de filhos, nascido na Régua e que fizera a escola primária na escola Carvalho Araújo de Vila Real, uma agradável surpresa para muitos dos presentes.
O conferencista percorreu a história da literatura portuguesa, distinguindo o anticlericalismo dos crentes (queixa de os clérigos não serem fiéis à sua vocação), o anticlericalismo ético (queixa nascida de algum desregramento comportamental dos clérigos ou por eles se oporem ao desregramento moral desses autores), e o anticlericalismo filosófico (rejeição do clero por ideologias da descrença, do anarquismo, do absolutismo político), que vigorou em Portugal a partir do séc. XVIII e inspirou a política da época. Esse anticlericalismo ainda se respira em certo teatro provinciano
O senhor Bispo que presidiu a todos os trabalhos encerrou a sessão com uma reflexão sobre a Igreja na história: «como uma barca no mar (imagem bíblica) a Igreja vive e trabalha sobre as ondas. Não deve fugir do mar (pois essa não seria a Igreja do Senhor) nem deve provocar tempestades ou temê-las mas, paradoxalmente, ajudar a vida dos pescadores». Recordou as ondas do judaísmo de que se libertou no tempo dos Apóstolos, o martírio no império romano, a tentação de se segurar com o imperador Teodósio, o seu empenho em fazer nascer a Europa, a viagem de braço dado com os príncipes católicos, a perda do vigor espiritual com a Renascença, o florescimento da fé missionária após os descobrimentos, o terreno minado do racionalismo iluminista que culminaria no regalismo e no liberalismo soprados pela maçonaria, e a perseguição aberta com as ditaduras do séc. XX».
Deste longo percurso, duas conclusões devemos tirar: «o poder político sempre gostou de ter a igreja do seu lado e a Igreja perde quando se encostou ao poder político». Temos de evitar o clericalismo pela preparação intensa dos leigos adultos capazes de agir no mundo. São eles que devem entrar na luta política partidária, mas sem venderam a alma ao diabo. A hierarquia deve pronunciar-se sobre os frutos da governação: as leis e os actos da governação no que tange aos aspectos de justiça social. Esta orientação vem já do Papa Leão XIII no tempo das lutas liberais e permanece na doutrina do Vaticano II. Deste modo, acaba-se com o «clericalismo» no interior da Igreja e fora, situação inevitável enquanto se não formarem leigos. O anticlericalismo, ético manter-se-á enquanto o Evangelho for sal que incomode; o anticlericalismo filosófico é inevitável numa cultura frágil e da descrença.
A acção pastoral deve insistir no anúncio positivo do Evangelho, pela piedade e amor de Jesus. O nosso tempo não é de confronto apologético directo mas de testemunho vivo. Aos sacerdotes e leigos presentes o bispo da diocese pediu que cuidassem de aliar culto e cultura: uma cultura sem culto, todos o sabemos, é um saber desumanizado, sem horizontes, abafado; mas um culto sem cultura dará origem a uma pregação sem densidade nem realismo, e a uma piedade ritual sem dinamismo histórico nem empenho social.