A gravidade das questões económicas e financeiras, do desemprego, da dívida externa, do desequilibro das contas públicas, da falta de produtividade e de cataclismo sentem-se depressa porque nos tocam no estômago e na carteira. As questões culturais só com o tempo. Por isso quem governa tem de dar prioridade imediata aos problemas económicos, como fazem os bombeiros que, em caso de acidente na estrada, socorrem quem está ferido deixando para mais tarde o exame das causas: falta de sinalização, perturbação do condutor, má construção da estrada ou avaria do veículo. Mas o exame à sinalização, à estrada, ao veículo, e a educação dos cidadãos têm de ser oportunamente examinados e cuidadosamente tratados, sob pena de não haver bombeiros que cheguem.
O problema do casamento e da família é semelhante. Tem aspectos económicos, mas é mais profundo e delicado que mera questão económica. E é a esse fundo cultural que as forças empenhadas na sua desvalorização assestam as baterias.
Acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma conhecida jornalista escrevia há pouco que tais casamentos devem ser aprovados porque precisamos de entrar no pensamento moderno e o grande obstáculo é o pensamento judaico cristão de milénios que só conhece o casamento heterossexual sempre ligado à procriação. Há, nesta afirmação, uma espécie de embriaguez pelo tempo, um certo anti-semitismo, um preconceito anti cristão e uma distorção do pensamento cristão.
Comecemos pela questão da procriação. O casamento cristão ou natural nunca pôs a procriação como condição de validade. A Igreja sempre aceitou o casamento de adultos que já não podem procriar e de jovens que venham a revelar-se estéreis. Mais: ensina que tais casais não devem procurar a todo o transe a fecundidade. A condição fundamental para o casamento é a capacidade sexual, que os juristas designam por potência de consumação do acto do diálogo carnal. A impotência absoluta permanente (com qualquer pessoa do sexo oposto) ou a relativa (em relação a uma pessoa concreta) é que torna o casamento impossível. Essa verificação da impotência relativa só se pode fazer dentro do casamento e dará lugar à declaração de nulidade de um tal casamento. Por aqui se vê a estima e a importância que a Igreja confere à sexualidade humana, longe do angelismo que alguns lhe atribuem e igualmente longe da fecundidade descontrolada.
A posição daquela jornalista, que é frequente em determinados sectores, é preconceituosa: acusa a Igreja de ser natalista e, por esse motivo, se opor aos casamentos gays e lésbicos que não podem gerar. Enganam-se: a oposição da Igreja não vem da falta de procriação, mas da incapacidade da plena sexualidade humana.
Vem depois um certo anti-semitismo, um preconceito anti cristão e uma espécie de embriaguez pelo tempo. Esquece que o chamado pensamento cristão, além das raízes bíblicas, traz consigo a reflexão grega, a jurisprudência do direito romano e germânico e a experiência de séculos na formação da sociedade, na morigeração dos costumes, na educação social. Tudo isso é posto de lado unicamente porque não nasceu hoje, «não é moderno, não é progressista». Aceitam o «tempo» como único mestre, deitando por terra tudo o que deu provas de sensatez, de razoabilidade, de experiência dos povos. Vivem a idolatria do tempo, a «cronolatria» que considera sempre melhor o que vem depois.
Os defensores de tais casamentos podem dizer que não proíbem a continuação dos casamentos hetero-sexuais, simplesmente colocam outros em plena igualdade. Chama-se a isto insultar as palavras que «também têm os seus direitos», como dizia D. António Ferreira Gomes, antigo bispo do Porto, desprezar a sexualidade humana, igualando o que é totalmente diferente, e ofender o Direito.
2 – O cidadão comum manifesta espanto, mas há sectores que parecem alheios à gravidade do problema. Há décadas que a sociedade vem a ser anestesiada por slogans de doutrinação insidiosa, aquilo que um pensador russo chamou «os pregos da inteligência»: frases sintéticas, de brilho aparente, que paralisam a reflexão pelo deslumbramento que provocam. Um desses slogans em voga é «deixar cada um seguir a sua consciência», «cada um faça como quiser».
Isto, que é correcto para questões de natureza exclusivamente privada (e, mesmo aqui, intervem-se sempre que a pessoa coloca a sua vida em perigo), é inaceitável em tudo o que respeita à vida em comum e à vida das instituições públicas. Aí a intervenção dos cidadãos é fundamental, pois o alheamento abre caminho à ditadura dos calculistas. Temos um exemplo nos mecanismos financeiros internacionais: todos sentimos que deve haver intervenção de todos porque isso afecta todos os cidadãos. Também o casamento e a família são instituições com dimensão pública, e o fracasso de um casamento ou de uma família irá perturbar outros homens e outras mulheres e as crianças daí nascidas. Também o modo como se legisla sobre o casamento e a família influencia as futuras famílias, pois alicia antecipadamente os jovens para esquemas de comportamento. A porta aberta convida à aventura. E os casos doentios, perguntar-se-á? – Resolver-se-ão por um esquema próprio, como acontece noutras anomalias, não os igualando aos casos normais. Concretizemos: gostaria de ver uma filha ou um filho aliciados para casamentos desse género? Um pai ou uma mãe aceitariam pacificamente ter como genro um homem casado com um filho seu, ou ter como nora uma mulher casada com uma filha? Aquilo que deixarmos à sorte, na ilusão de que a nós nunca acontecerá, pode vir a acontecer-nos no futuro. E mesmo que nunca venha a acontecer-nos, continua a ser nossa obrigação olhar pelo bem público. Não é por não termos carro ou não utilizarmos as auto-estradas ou aviões que podemos ficar indiferentes ao que se passa e se legisla nesse sector. Todos somos co-responsáveis pelo bem comum.
3 – Em várias intervenções públicas (escritas e orais) o Papa tem referido que os problemas de hoje são problemas de cultura, de mentalidades, subjacentes aos problemas económicos e financeiros. Mas a desorientação cultural é especialmente visível em áreas como o casamento, a família e a educação. Fixando-nos apenas em tecnologias, não teremos capacidade de avaliar o que é melhor ou pior, aceita-se tudo.
Há anos, num debate televisivo público em Roma entre o cardeal José Ratzinger e um conhecido ateu militante italiano, o diálogo foi avançando gradualmente até chegar ao ponto de se invocar a natureza como um pilar que lembra ao homem os seus limites e a obrigação de a saber ler. Esse ateu explode afirmando que não há natureza humana, não há nada estável no mundo, não há moral natural, nem verdades, mas só opiniões! É a corrupção da inteligência.
É essa ideologia que está subjacente a tais «casamentos»: não há natureza humana masculina nem feminina que seja orientadora de nada, e qualquer união sexual é válida e humana, dizem. Chegados aqui, onde é que nós estamos?