A implantação da República é o ponto de chegada de um longo processo de degradação da monarquia, com variados aspectos que não interessam para aqui, como a discussão das vantagens de um regime sobre o outro. Jorge Miranda resume-o dizendo que a diferença entre os dois regimes é grande se se trata de uma monarquia absoluta, mas entre uma monarquia constitucional e o regime republicano a diferença reside quase só na figura pública do rei e do presidente, cargo que no primeiro caso está reservado a uma família e no segundo é aberto a todos os cidadãos e, nesse aspecto, mais democrático. Neste lugar pretendo unicamente recordar alguns princípios gerais sobre a presença dos cristãos na vida pública e as relações instituições da Igreja com qualquer regime político legítimo, e que a mudança de regime pôs em relevo.
2 – Nestes dois mil anos, a Igreja tem vivido em todos os regimes políticos: no Império Romano onde havia escravatura, com os povos bárbaros da Europa após a queda do Império do Ocidente, com as nações medievais organizadas em monarquias muito diferentes entre si, com os Estados modernos também diferenciados, em terras de missão com povos entregues ao poder tribal ou colonizados por potências europeias, e na sociedade contemporânea marcada por movimentos ditos democráticos.
No plano das relações instituições, a Igreja tem como princípio orientador, desde o tempo de S. Paulo, o respeito pelo poder legítimo, mesmo pagão, e o empenho em levar à sociedade civil os seus valores. Da hostilidade inicial à Igreja passou-se, ainda no Império Romano, ao reconhecimento da igualdade da Igreja com outras religiões e à aceitação do cristianismo como religião oficial. Na Idade Média surgiu a filosofia política da «nação cristã» com a conjugação dos poderes para melhor servir o povo, fase que nem sempre foi útil para a Igreja e que está hoje ultrapassada.
Na monarquia portuguesa, o catolicismo foi oficialmente considerado a religião do reino mas as relações oficiais nunca foram totalmente pacíficas, tanto na monarquia absoluta como na liberal. Nos anos finais da monarquia houve uma grande divisão entre os católicos acerca do compromisso político, advogando uns a formação de um «partido católico» que reunisse os católicos dispersos pelos vários grupos, e preferindo outros a militância geral em «defesa dos valores cristãos inseridos na pátria». Os grandes inimigos da fé não eram, porém, as guerrilhas partidárias de miguelistas, liberais e constitucionalistas, mas os grupos ideológicos que se opunham à presença dos valores cristãos objectivos na sociedade portuguesa: os positivistas e progressistas, os anarquistas, os socialistas e republicanos, a maçonaria e a carbonária. O anticlericalismo dissolvente não era a crítica ao comportamento individual dos católicos e dos padres, como fazia Camilo nas suas novelas, mas a orientação institucional para três objectivos: a funcionalização da Igreja, o anticongregacionismo e a secularização da sociedade, ou seja, reduzir a Igreja ao cumprimento das tarefas que o Estado lhe confiava, arrogando-se ele o direito de nomear bispos e párocos (muitas dioceses ficaram sem bispo e outras com dois), expulsar as congregações religiosas como entidades educadoras, e reduzir a religião aos actos de culto no interior dos templos.
A cultura religiosa era débil mesmo entre o clero, os actos do culto andavam cheios de sentimentos românticos com músicas profanas e retórica vazia, e a luta doutrinária restringia-se a um pequeno grupo. Na pregação popular lembremos as «missões populares» feitas pelos «missionários apostólicos» como o nosso P. Manuel do Couto, de Telões (V. P. de Aguiar) e o P. Jeremias, de Boticas.
Em Fevereiro de 1892, Leão XIII enviara um texto normativo aos católicos franceses para que distinguissem a sua relação com as estruturas políticas legítimas e com a legislação por elas produzida: os católicos deviam respeitar as primeiras, mesmo não católicas, e criticar a legislação por elas produzida quando fosse caso disso, empenhando-se na luta das mentalidades. Foi essa também a posição geral dos bispos da época.
3 – Por isso, em 1910, ao ser oficialmente derrubada a monarquia e instituída a República, a mudança foi aceite como mais uma mudança política semelhante a outras que aconteceram na Europa. A queda da monarquia não criou muitas saudades no interior da Igreja oficial. Houve casos isolados de padres e bispos saudosos da monarquia pelas amizades pessoais, mas o geral aceitou com naturalidade a alteração do regime, até porque nos anos finais da monarquia tinha havido atritos com a Igreja. O regime de separação da Igreja e do Estado foi procurado pela Igreja.
O que houve de surpreendente foi verificar que a República não se apresentou propriamente como um novo regime político, mas como uma ideologia militante, absorvente, com uma enorme a agressividade à Igreja, tentando afastá-la totalmente da sociedade civil e acantoná-la no interior dos lares e dos templos. Esta mentalidade vinha desde Pombal, a tentação de o Estado ser o «senhor» de tudo: da economia, da justiça, da educação, da assistência, da cultura institucional. Na prática, a Republica surgiu como prolongamento dos grupos e ideologias já referidos, que eram a preocupação da Igreja na monarquia.
Esta mentalidade prolonga-se na actualidade com a radical secularização da sociedade, impondo um modo de ser cidadão e até de ser homem: laico e relativista. Os actos legislativos sobre o «casamento» entre pessoas do mesmo sexo fazem parte dessa política objectiva. Vieram antes da abertura oficial das comemorações República, mas já no ano centenário de 2010.
No prolongando das orientações de Leão XIII, o Concílio do Vaticano II ensina que a Igreja vive com todos os regimes políticos e não tem nenhum regime político que possa considerar seu, que os Estados (as estruturas do poder mas não a sociedade civil) devem ser aconfessionais, que nenhum partido político pode arvorar-se em representante oficial da Igreja, que a Igreja não entra na luta política partidária mas estará obrigatoriamente presente na defesa dos valores naturais, humanos e cristãos a incutir na sociedade.