Quando foi eleito para suceder a João Paulo II, num dos conclaves mais breves da história, houve alguma expectativa a seu respeito, devido às tarefas delicadas que desempenhara até então na Congregação para a Doutrina da Fé (promotora da Fé e defensora da ortodoxia doutrinária), e também por causa da idade e debilidade de saúde ( é um cardíaco).
Estes quatro anos revelaram um homem atento e corajoso, delicado e firme. Fez várias visitas pastorais, sem pressa, às paróquias de Roma, a sua diocese como bispo diocesano, e, como Supremo Pastor da Igreja, visitou várias cidades da Itália e fez outras visitas mais demoradas a países distantes, como a viagem recente à Austrália no encontro da Juventude, e a estruturas científicas e de poder político na Europa e na América.
Em todas elas revelou a sua qualidade de mestre da fé e do humanismo cristão, tal como tem acontecido em documentos oficias, sejam as duas encíclicas sobre a «Caridade» e a «Esperança», sejam as catequeses das quartas-feiras e as múltiplas homilias, sejam os documentos publicados por várias Congregações e outros dicastérios romanos, que supõem sempre a sua anuência. Ao lado desse magistério oficial, publicou como teólogo uma reflexão sobre «Jesus de Nazaré» com várias edições em todo o mundo, aguardando-se um segundo volume; e as editoras publicam continuamente textos do seu magistério anterior, sinal da audiência que o seu nome desperta em todo o mundo.
É essa, de facto, a característica fundamental deste Papa – o homem da segurança e clareza da doutrina, teólogo e pastor ao mesmo tempo. Foi essa tarefa que ele, no encontro anterior ao conclave, anunciou aos cardeais como prioridade do novo Papa – a luta contra o relativismo difundido na cultura actual e que destruiria toda a mensagem cristã. Após a eleição, ele próprio tem sido fiel a essa tarefa, não em processos e decretos canónicos e judiciais, mas em reflexões profundas e pastorais. O seu estilo é o que poderemos chamar uma linguagem substantiva onde as palavras são somente as necessárias, escolhidas, com rigor e afecto. Afasta do seu discurso os adornos românticos e retóricos, mas não exclui os sentimentos protocolares e a memória do coração. Neste aspecto tem surpreendido pela positiva, ultrapassando o estilo da reflexão teológica académica e disciplinar que exerceu durante muitos anos.
Essa fidelidade à fé, à doutrina da Igreja e ao Concilio e a denúncia dos desvios da cultura e até do sentido do ecumenismo, têm-lhe trazido as já esperadas dores de cabeça. Só se mostrou surpreendido uma vez – a crítica interna de alguns sectores da Igreja ao levantamento da pena canónica da excomunhão dos lefrevianos e a leitura abusiva desse gesto tomado como aprovação das declarações de um dos bispos desse grupo acerca do holocausto nazi e seus reflexos nas relações com os judeus. É um exemplo típico da confusão que o mundo gosta de criar. Ficaram também conhecidas as afirmações feitas em Ratisbona sobre a estrutura cultural interior ao islamismo e, mais recentemente, durante o voo da viagem aos Camarões e a Angola, o seu comentário sobre a oficialização do preservativo como terapia da sida, e a inevitável nuvem de poeira criada pelos «media». É evidente que, tanto num como noutro caso, Bento XVI tem toda a razão no que disse, e a confusão manifestada até ente cristãos nasce da dificuldade de muita gente em ultrapassar a cultura estabelecida e ir ao fundo das questões. O princípio do duplo efeito não vale para tudo. O Papa é o homem do anúncio da verdade e da denúncia do desvio da razão, o que não significa que identifique «erro» com «pecado».
Quem leu o discurso feito em Ratisbona pôde admirar o alcance do apelo à razão dentro dos conteúdos religiosos. Fora dos grupos extremistas, os muçulmanos crentes aceitaram o pedido do Papa e em comunidades muçulmanas nasceram já grupos de reflexão interna.
O mesmo se diga da polémica criada pelas palavras no voo para África. Acerca do tema, alguns cientistas e organismos científicos sem interesse económico nas técnicas industrializadas dos anticonceptivos já manifestaram o seu acordo com o Papa. Causou surpresa que o parlamento nacional de um país europeu se atrevesse a criticar a doutrinação do Papa. É do mesmo teor um artigo infeliz que um conhecido político português publicou, num diário do Porto, sobre Bento XVI e o seu magistério. Esse texto pode valer como sinal de franqueza pessoal, mas revela a ignorância da teologia e até da filosofia cristã. Vistas bem as coisas, como é que um homem que faz profissão de «agnóstico, racionalista, laico e republicano», defensor doentio do relativismo e da tolerância por carência de verdade (que não é a mesma coisa que a tolerância cristã nascida da abundância da verdade e do amor), como é que um tal homem se julga capaz de entender o Concílio e o magistério de Bento XVI? Diz que já no tempo de João Paulo II não compreendera alguns dos documentos do falecido Pontífice. Ainda bem que o confessa, pois o sorriso e a bondade do Papa Woityla não são sinónimos de anomia intelectual nem de uma bondade vazia. Algo semelhante se poderá dizer de um conhecido professor universitário que não viu a diferença entre o levantamento disciplinar de uma excomunhão de alguém sem aprovação da doutrina professada pelos réus, e a manutenção do afastamento de professores católicos teologicamente errados. Nos dois casos há erros de doutrina e esses são tratados como iguais, ou seja, as pessoas mantêm-se afastadas da fé católica, mas sem penas canónicas suplementares.
Pela segurança que oferece a um mundo culturalmente naufragado, Bento XVI é bem o «vigário da pedra». Que o Senhor o conserve por muitos anos ao leme da sua Igreja.