Quinta-feira, 16 de Janeiro de 2025
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Celebrar a Páscoa em tempo de crise

Celebra-se a Páscoa deste ano no meio de uma grave crise económica e financeira, de tal modo que a festa da Páscoa parece não ter ambiente social para a sua celebração. As pessoas gostariam de viver uma sociedade financeiramente saudável para então fazer com alegria a festa da Páscoa, e sem aquela estabilidade económica a Páscoa não é apetecível. Dito de outro modo, alegria pascal e crise parecem dois rios que correm paralelos sem nunca se encontrarem.

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Esse facto e esse sentimento conduzem-nos ao fundo do problema: a Páscoa cristã não pode ser vista como uma flor acrescentada à paisagem social, um adorno ao nosso bem estar, mas têm de cruzar-se: a Páscoa é um acontecimento da vida de Jesus Cristo e é uma revelação das profundidades do coração humano. Pelo acontecimento pascal, a pessoa de Jesus Cristo passou de um estado de vida sujeita às leis do espaço geográfico e do tempo histórico a um estado de vida liberto desses condicionalismos, e esse dinamismo pascal de Jesus entra no coração humano fazendo-o passar da mentira à verdade, da inveja à generosidade, do individualismo à comunhão, da vaidade ao realismo, dando origem ao que os textos bíblicos chamam o «homem novo», o homem capaz de uma conduta generosa e sacrificada. Todos os revolucionários, os criadores das grandes utopias, os ideólogos mais ousados, sonharam com esse «homem novo» e o mundo novo, mas o resultado foi sempre o mesmo: o homem comum, cheio de conflitos, desanimado e frustrado como Sísifo aos pés da montanha que não conseguiu ultrapassar. Esse homem novo só é possível pelo fermento de Jesus ressuscitado.

A sociedade renovar-se-á pela presença activa do homem novo. A sociedade actual, e concretamente a sociedade portuguesa, é um exemplo dessa sociedade cansada e frustrada. Andou a sonhar com a possibilidade de crescer sem verdade, sem o suor do seu rosto, apoiada em elites desrespeitadoras dos outros grupos e classes, colocando até nos alicerces da sociedade civil e de novas famílias comportamentos antinaturais. Logicamente, vieram ao de cima os pés de barro desses projectos. Neste contexto, a Páscoa de Jesus faz um apelo à conversão, à humildade, ao reconhecimento da verdade, à descida ao mundo real. Esse apelo ao esforço pascal é-nos lembrado em cada dia pelo Crucifixo que temos em nossas casas e que trazemos ao peito, pelo sinal da cruz que fazemos diariamente sobre nós mesmos e que ainda se levanta em monumentos de pedra nas encruzilhadas dos caminhos da nossa terra. Se formos capazes disso, de «pascalizar» a vida pessoal, familiar e social, faremos renascer a vida entre nós.

Em 1967 o Papa Paulo VI publicou com data da Páscoa desse ano uma encíclica sobre o «Desenvolvimento dos Povos» que ficou conhecida como encíclica pascal do mundo. Ao terminar esse documento, o Papa ensina que os governantes mundiais devem possuir, ao lado de bons técnicos, «homens dotados de sabedoria», capazes de perceber os dinamismos profundos do homem e da história. Essa sabedoria inclui a consciência da fragilidade do coração humano, daquilo que o catecismo chama pecado original ou universal, «o qual tem uma importância fundamental na vida social» como diz o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.120, editado em 2004. Esse Compêndio prolonga a advertência da carta de Paulo VI sobre a sabedoria e lembra que «a raiz do mal está dentro de cada um, e induz o homem público a não buscar bodes expiatórios nos outros homens e justificações no ambiente e na hereditariedade, nas instituições e nas estruturas naturais. Trata-se de um ensinamento que desmascara tais engodos». Há no coração de cada um uma raiz de mal e, se não for acautelado, esse mal passa para os actos dos cidadãos e dos governantes e vai envenenar as estruturas. A força da Páscoa cristã é a única energia capaz de nos libertar desses escaninhos sombrios.

Sei que estes conceitos não fazem parte da cultura nem da linguagem políticas. Há muitos anos que o filósofo Jacques Maritain dizia isso mesmo: que a desgraça da vida política é que ela não conhece o «pecado» nem os políticos gostam de se «arrepender» nem de «pedir perdão», e culpabilizam sempre os outros grupos por todos os males e nunca batem no próprio peito.

Sem defender a inclusão daquelas palavras no vocabulário político, o seu conteúdo deve, contudo, estar presente no coração dos cidadãos e dos governantes como elementos da tal «sabedoria»: é pecado grave esbanjar dinheiros públicos, favorecer grupos em detrimento de outros, menosprezar o bem comum, iludir o povo com triunfos fáceis. Nos textos bíblicos e nas orações oficiais das celebrações da Semana Santa surgem referências a soldados, a tribunais, ao governador romano e ao centurião militar, ao rei e ao sinédrio e aos sacerdotes do templo de Jerusalém, numa palavra, ao poder político e religioso de Israel, e tais referências não são sempre lisonjeiras acerca das suas responsabilidades na sociedade do tempo.

A Páscoa de Jesus não é uma flor de adorno social mas a denúncia dos erros da sociedade e o fermento para a sua saúde. Por isso, a Páscoa e a crise actual não devem passar uma ao lado da outra.

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