A pergunta que o cidadão comum faz é saber se a Constituição é assim misteriosa, se todos os deputados a conhecem, ou se um número deles se limita a levantar o braço atrás de dois ou três líderes que parece actuarem por militância pessoal e obediência a ideologias. «Dá que pensar».
Também dá que pensar ouvir órgãos de soberania denegrir as sentenças do Tribunal Constitucional acusando-o de parcialidade e de desrespeito pelos outros órgãos de soberania. Afinal, o Tribunal Constitucional não é o órgão criado nas democracias exactamente para esclarecer a lei e resolver conflitos deste género? Como é que órgãos do poder político se colocam acima dele, gritando não precisarem de lições de ninguém? Estas posições acabam por lançar nos cidadãos dúvidas sobre o valor das instituições democráticas.
2 – Tudo isto me veio ao pensamento enquanto prossigo a leitura da recente encíclica de Bento XVI, a qual, nas duas primeiras partes, chama a atenção para a complexidade actual da vida política que exige dos homens públicos articulação de conhecimentos, de sabedoria, de cultura e de capacidade de reflexão.
De facto, quem observa as estruturas sociais e políticas, tanto nacionais como estrangeiras, sente que elas carecem de lubrificação: funcionam mal, são lentas, inquinadas por interesses, oblíquas, mentem. Nestes dias, ouviram-se queixumes do veneno capitalista que invade a banca comercial e proclamou-se à boa pequena o regresso à sua nacionalização. De facto, os empresários privados têm a tendência do lucro doentio: há anos foi notícia do abuso das empresas dos telefones em incluírem impulsos e taxas indevidas; recentemente foi a denúncia das taxas dos telemóveis, os mais caros da Europa; aqui e ali é a tarifa das águas municipais; a EDP inclui contadores legalmente discutíveis. Tudo isso confirma a presença do «veneno». Mas no pólo oposto, nas empresas nacionalizadas, há veneno semelhante: dão sistematicamente prejuízo, pois os possíveis lucros são absorvidos pelos salários e regalias constantes dos que lá trabalham. Tudo acaba por ser saldado à custa dos outros cidadãos. Dir-se-ia que os meios de produção estão «bichados» e carecem de ser purificados, porque, se estão nas mãos dos privados, exploram quem a eles recorre; se estão nacionalizados, beneficiam somente os que lá trabalham, afinal os seus «proprietários», e exploram os outros contribuintes.
Onde encontrar óleo da lubrificação dessas estruturas? Mais instrução? -Muitas vezes são os mais dotados os piores ratoneiros. Mais fiscalização? -Aparecem fiscais implicados nas redes dos criminosos.
Na sua carta o Papa escreve que «as relações humanas dependem da perspectiva religiosa: só o encontro com Deus permite deixar de ver no outro sempre e apenas o outro, para reconhecer nele a imagem divina, chegando assim a descobrir verdadeiramente o outro e a fazer amadurecer um amor que se torna cuidado do outro e pelo outro» (n.12). E noutra passagem continua: «sem a perspectiva da vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de «respiração», e a humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas». E conclui: «quando um Estado promove, ensina ou impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenhar no desenvolvimento humano integral e impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma resposta humana mais generosa» (n.29).
Quem assume isto? Não se julga hoje normal que um político, um grande empresário, seja religiosamente indiferente e mesmo agnóstico? Não se diz por aí que «a religião não tem nada a ver com a política»? Não diziam os velhos brasileiros que «negócio é negócio e religião é religião». É o mesmo que dizem os mundanos: «amor é amor, religião é religião».
A sentença de Jesus de «dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus», constantemente invocada, significa que o poder do Estado não é divino e terá de respeitar os valores absolutos de Deus. Só os aspectos puramente técnicos estão isentos de um olhar ético e religioso, mas o seu exercício já ultrapassa a área de César. Mas essa sentença não vem a ser entendida ao contrário, como se o Estado tivesse um poder paralelo ao poder de Deus?
Também isto dá que pensar.
3 – Ao aproximar-se as eleições legislativas a realizar em 27 de Setembro, não podemos evitar a pergunta pela presença dos valores nos partidos e naqueles que os representam. A esse respeito, recordo o ensinamento do concílio Vaticano II (Constituição «Gaudium et Spes») de que a política é uma arte e uma ciência e aqueles que são ou podem vir a ser capazes de a exercer, devem ser cuidadosamente preparados, nomeadamente os jovens. Pergunto-me o que é que alguns candidatos a deputados sabem de economia, de direito, de ciências sociais, da história e cultura europeias, da problemática da família, da história do divórcio, dos movimentos sobre a natalidade, dos direitos do homem e da mulher e da criança, da importância da vida religiosa na sociedade civil, do diálogo das Igrejas com os Estados, da problemática da laicidade e do laicismo numa sociedade democrática, das questões emergentes da bioética, da verdadeira tolerância e suas contrafacções, dos direitos dos pais na educação dos filhos, da liberdade escolar nos Estados modernos!
Às vezes é-se tentado a pensar que só interessa o emprego pessoal, e que, para ser deputado, julga-se suficiente saber dizer uns lugares comuns, dirigir umas piadas dialécticas e seduzir multidões. Perante dificuldades e desafios, acontece deixarem essa decisão a núcleos de deputados de vários partidos a quem obedecem de braço no ar ou entregam-na à consciência de cada deputado, acabando as leis por serem ditadas por sentimentos ocasionais! Dá que pensar.
4 – A palavra que enche a sua boca de muita gente é o «progresso», a «modernidade», ser «actual». E fica-se por aí, esquecendo que quem casa com a «actualidade» no dia seguinte está viúvo. Usando o critério do tempo, o progresso será possuir a última conquista tecnológica, e uma sociedade evoluída confundir-se-ia com uma sociedade mais gorda. Tudo isso é superficialidade. O que diferencia os actos humanos é o valor permanente, supra temporal, que os anima.
Falando do desenvolvimento dos povos, Bento XVI lembra na sua encíclica que «o desenvolvimento do ser humano diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões: valores culturais, económicos, morais, artísticos, sociais, religiosos. Mais: «o desenvolvimento da pessoa não pode fazer-se tratando esses aspectos em separado e somando-os depois, mas terão de desenvolver-se em conjunto desde o início».
Dá que pensar o que oficialmente se passa entre nós, nomeadamente na área da Educação e da Família. Não é por haver sido um grande atleta olímpico ou um corredor famoso ou uma bailarina talentosa ou filho de político, que alguém serve para deputado. Como disse recentemente a Conferência Episcopal, ser deputado não pode ser um prémio, nem uma vitória da simpatia. Competência doutrinária e experiência humana, cultura e maturidade, respeito pelos valores da sociedade civil e zelo pelo bem comum, são critérios basilares da acção política.
Dá que pensar.