A globalização ou mundialização é a interdependência da economia levada ao extremo, «todos dependemos de todos», à semelhança de uma circulação do sangue que unisse o corpo de todos os povos, com as vantagens e riscos inerentes: a hemorragia de um membro fará tremer os mais afastados, e um aumento de sangue num deles elevará os glóbulos vermelhos de todo o mundo. Paulo VI tinha-a previsto em parte, mas «os termos e a impetuosidade com que ela evoluiu são surpreendentes. Nascida no âmbito dos países economicamente desenvolvidos, esse processo causou um envolvimento de todas as economias e foi o motor principal para a saída do subdesenvolvimento de regiões inteiras (n.33). Diz Bento XVI que, «de si, a globalização nem é boa nem é má. Será aquilo que as pessoas quiserem e opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito. «Durante muito tempo, pensou-se que os povos pobres deveriam permanecer ancorados num estádio predeterminado de desenvolvimento, contentando-se com a filantropia dos povos desenvolvidos», uma mentalidade contra a qual se insurgira Paulo VI.
A globalização corresponde, de algum modo, ao sentimento natural da fraternidade humana, e Bento XVI estabelece que «não devemos ser vítimas passivas da globalização mas protagonistas da mesma, actuando com razoabilidade», com verdade e caridade. Aí está um desafio para os empresários e governantes, um apelo à lucidez e à coragem.
2 – Intimamente unida à globalização está a deslocalização, uma realidade ligada ao segmento da produção económica e, grosso modo, pode definir-se como a montagem da empresa naquela região do mundo que ofereça mais vantagens económicas. Faz lembrar os clássicos «circos» que andam de terra em terra a oferecer espectáculos nas feiras e festas mais frequentadas pelo povo. A deslocalização tem por detrás o espírito de empresa, a sua filosofia e a sua ética. Por isso, Bento XVI faz preceder e entremeia as suas reflexões sobre a globalização e a deslocalização com umas notas gerais sobre o mercado em geral.
O mercado é, em si mesmo, uma actividade legítima: estabelece laços comerciais entre pessoas e grupos, estimula a iniciativa e a criatividade dos cidadãos, estabelece laços comerciais entre pessoas e grupos, e cria mesmo relações afectivas entre eles. Podem surgir abusos graves, como falsificação de produtos e fraudes, mas o abuso pode acontecer em tudo o que é humano. Por isso é que a autoridade estatal deve acompanhar o mercado, mas sem o eliminar. Esta foi a tentação dos Estados absolutistas (chamem-se socialistas radicais, comunistas ou outro nome), entregando a produção toda ao Estado, feito senhor de tudo e único vendedor. Todos conhecemos o seu resultado económico: os possíveis vícios do mercador privado passaram todo para o Estado com a agravante de não produzir e atrofiar a criatividade dos cidadãos. O Papa não cita estes desvios estatais, fala de «preconceito», mas todas as pessoas com alguma cultura social entendem para onde se dirigem as suas palavras. Assente, então, que o mercado é basicamente legítimo, é legítima também a economia da empresa privada e é legítima a deslocalização da empresa que lhe anda anexa.
3 – Reconhece-se, porém, que é um modo de produção que apresenta graves riscos que o Papa estuda em palavras breves: «a chamada deslocalização da actividade produtiva pode atenuar no empresário o sentido da responsabilidade pessoal para com os trabalhadores, os fornecedores, os consumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais alargada, beneficiando somente os accionistas, pois o mercado dos capitais oferece hoje uma grande liberdade de acção» (n.40). Explicitemos um pouco esta síntese.
Em primeiro lugar, a deslocalização desfaz o vínculo que tradicionalmente une os gestores e os trabalhadores à sua terra de origem e passam a ser trabalhadores com os pés no ar, emigrantes permanentes, longe da família, da sua terra e costumes; em segundo lugar, essas empresas levam o dinheiro dos muitos investidores para fora dos lugares onde o dinheiro foi ganho, semelhante à água das nuvens que o vento arrasta e que vai regar terras afastadas do lugar onde se fez a evaporação; em terceiro lugar, retira o rosto pessoal à empresa que passa a ser uma máquina anónima e, consequentemente, é maior a tentação de fazer uma exploração industrial poluente por se tratar da «terra dos outros». E traz outras ameaças: uma primeira é saber a quem pagam impostos essas empresas e como obrigá-las; outra é a ameaça de se tornarem depressa estruturas irresponsáveis com tentação de fraudes financeiras em relação àqueles que lhes confiaram o seu capital; a terceira é gerir essas empresas de modo especulativo, isto é, os gestores procurarem lucros imediatos do capital reunido, fazerem o chamado jogo especulativo, vendendo o dinheiro caro a outros e evitando eles o investimento do dinheiro (não lançando a semente à terra, como na agricultura, o que daria trabalho a mais gente e melhoraria a sociedade humana. Os especuladores do capital limitam-se a vender o dinheiro a juros altos e a pronto pagamento aos que vão investir, e esses desgraçados, depois de terem pago caríssimo o dinheiro, é que vão investi-lo e nunca mais auferem produtos que permitam compensar o dinheiro e juros já pagos, o seu trabalho pessoal e o daqueles que trabalham com ele!
Temos, pois, dois tipos de empresas deslocalizadas: aquelas que vão mesmo trabalhar levando o capital e o pessoal; e as que só «deslocam» o capital acumulado de muita gente de modo a poderem auferir lucros pela venda desse dinheiro a investidores. As primeiras, que podemos chamar empresas deslocalizadas de trabalho, têm os inconvenientes já referidos e bom seria que, tanto quanto possível, se aproximassem das terras de origem dos seus trabalhadores; as segundas, as «empresas de capitais» que não deslocam pessoas mas somente o dinheiro de muita gente, devem evitar jogos especulativos, imorais, e investirem directamente ou ajudarem quem investe limitando-se aos juros compatíveis (n.40). Uma conclusão se deve retirar: uma terra de muitos bancos não é necessariamente uma terra evoluída, se esses bancos se limitam a sugar dinheiro dos residentes para o semearem todo fora.
De qualquer modo, nenhuma dessas empresas se pode eliminar como criminosas, porque os dinheiros honestos que os cidadãos pouparam e lhes confiaram, assemelham-se hoje a «bem produtivos» que são os juros. Todavia, essas empresas estão ameaçadas de graves desvios, sobretudo as segundas. Mesmo assim, permanece o princípio de que o abuso de um bem não retira o direito de existir, exige somente uma vigilância apuradíssima. Aí reside o problema.
Compreende-se, deste modo, que o Papa na encíclica não condene em absoluto nem a globalização nem a deslocalização, como queriam alguns ideólogos extremistas estatizantes, mas convida as autoridades nacionais e internacionais a uma maior vigilância. Também aqui a «verdade» tem de estar na base da economia, da vida das empresas e da vida política.