Agora, os sinos rebolavam-se em multiplicadas ressonâncias que se iam perdendo pelas vinhas, quelhos, caminhos, ruas, casas e barracos… O sacristão derreado pelo peso da idade e das dívidas contraídas nas tabernas, cerrava os olhos, falava sozinho cruzando as mãos dizendo resignado na sua indisfarçável e ardente fé: “Louvado seja Deus na sua misericórdia”… “Assim seja louvado”, respondia uma voz engasgada e funda a lembrar uma alma do outro mundo.
Naquele dia, quem erguesse os olhos, só via deslumbramento e paz. Tudo branco, como noivas a noivar. Em todos os lugares havia mantos de brancura que levavam as pessoas a cismar levando-as a um mundo fantasmagórico da pura ilusão e encantamento.
As festas na aldeia faziam engordar as pessoas. As “pitas” atordoadas pareciam até adivinhar o seu destino, pelo rebuliço e entusiasmo do povo e fugiam loucas e desconfiadas quando as donas se aproximavam com palavrinhas meigas… “pilôa, pilôa, anda cá minha pilôa que te dou um bocado de broa”… assim chamava uma senhora avantajada de corpo para apanhar as suas pitas quando as queria matar…
Entretanto, uma mulher de muita idade, a quem chamavam Pitôa, vivia com uma irmã numa espécie de palheiro, um tugúrio mais lugar de cabras, bestas ou covil de ladrões.
Nessa quadra de Natal, sentiu-se o inverno a negar qualquer tipo de colheita… nas casas mais pobres só havia cinza com o lume quase apagado e rezas à espera de um qualquer milagre de um qualquer santo.
A Pitôa banhava-se em lágrimas com saudades da mãe, do pai e de um irmão tresloucado, desaparecido como D. Sebastião em dia de nevoeiro. Com a aldeia coberta de um manto diáfano de neve, a pobre chorava as dores, lembrando o passado daquela tão linda quadra.
O pó e as cinzas não lhe saíam da cabeça.
É triste! No epílogo da vida viver quase só, sem nunca ter rapaz ou até algum viúvo, ou mesmo coxo que para ela olhasse… um beijo? Só em sonho… por isso vingava-se beijando cão e gato e até a burra da ti Balbina que pastava por ali perto e também ela desconfiada dos beijos daquela pobre criatura…
Assim, a mulher fervilhando em louco desespero não queria deixar ir para a sepultura uma sua irmã conhecida pela sua pureza e virgindade por opção… não, a sua irmã era a única companhia, a razão da sua existência e para ela bastava o seu olhar a sua presença, o calor da sua voz, o toque santo das suas mãos, a doçura do seu sorriso.
Morreu de velhice, a Pitôa, de assombramentos e misérias…toda a aldeia a chorou. “Uma santa” como alguém dizia porque quando saía à rua transportava nas mãos um velho cruxifico que tinha sido pertença da sua avó “Rosalina”… no rosto, as lágrimas eram a representação dos seus silêncios traduzidos em pensamentos e pequenos sussurros para com Nossa Senhora de Fátima de quem era devota fervorosa…
No funeral alguém terá comentado: “virá, virá também a nossa hora, e com ela o mundo ficará mais leve de pecados”. A Pitôa, no cemitério ficou ao lado do seu pai Martinho, que toda a vida juntou dinheiro para ter direito a um funeral revestido de dignidade e pedra lapidar e acompanhamento de banda filarmónica… E na pedra pode ler-se palavras em forma de epitáfio: aqui jaz Martinho sob esta lápide, descansa em paz, neste lugar, neste bonito cantinho…”
Rapidamente as “Ave Marias” vibraram em ecos quebrados na Carvalhada.
Depois da morte é a alma da natureza que purifica, como bênção de uma vida que descansa. É a hora de Deus.