Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2024
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Globalização, pessoas e grupos

1. Quando se analisa o fenómeno da globalização e seus efeitos negativos, somos tentados a afirmar que ela destrói as pessoas e os grupos sociais, as famílias e os pequenos e médios empresários, os sindicatos e os grupos ecológicos. Poderíamos chamar à globalização um gigantesco Golias desprezador de todos os que lutam com a funda de David, o império absoluto do colectivismo semelhante a um polvo gigantesco estendido sobre o mundo. Historicamente, essa tenaz economicista pode revestir a forma capitalista ou do colectivismo marxista. Ambos os colectivismos abafam a iniciativa dos indivíduos e dos grupos, num caso ao serviço de alguns capitalistas, noutro caso ao serviço do Estado dito da classe operária. Terá de ser assim? O Papa aborda esta questão no cap. V da sua encíclica social, «A Verdade na Caridade»

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2. De modo sintético, Bento XVI ensina que a globalização económica violenta nasce do abuso do exercício do mercado e da falsidade como sistema político. A economia que se queira verdadeiramente humanista tem de servir e desenvolver sempre as pessoas e as famílias, os grupos existentes nas comunidades nacionais. Este é o princípio fundamental de uma filosofia económica humanista.

O Papa desenvolve esta tese nos primeiros números (53-58): em nome da pessoa humana, da família, das relações humanas, do princípio da subsidiariedade e da própria economia, a globalização absolutista nunca poderá ser aceite, porque, à maneira de um eucalipto maldito, seca tudo em seu redor, esterilizadora de pessoas e grupos humanos.

3. De um modo algo surpreendente neste tipo de documentos, o Papa começa por lembrar que a raiz desta posição da Igreja é o facto de a pessoa humana viver das relações humanas, que elas são constitutivas da pessoa. Têm uma base teológica no interior do mistério da SS.ma Trindade, cujo mistério é o mistério das relações das três pessoas divinas. O homem, criado à imagem de Deus, vive das relações de rosto humano.

Não se pode ir mais fundo na fundamentação da doutrina social. A «solidão» destrói a pessoa, destrói as famílias, destrói os grupos, destrói a sociedade, e a demonstração psicológica mais clara da doença é o autista, exactamente por não estabelecer relações normais com os outros. O ateísmo é uma forma radical de solidão, a solidão do homem que se «esconde e foge de Deus», e o ateísmo tem consigo o seu calcanhar de Aquiles como gerador do desumanismo!

Fica-se surpreendido com a importância que o Papa dá aos aspectos doutrinários de carácter metafísico e teológico, mas essa é a característica do seu magistério, empenhado em dar à cultura raízes sólidas porque «o mundo sofre por falta de convicções» (Paulo VI). A falta da sensibilidade a este tipo de reflexão é notória nos políticos e nas religiões que não têm rosto humano (como tem o Cristianismo), nas seitas e grupos espirituais que acabam por atiçar o fundamentalismo religioso, individualista, competitivo, gerador de racismo e de violência religiosa! Por isso, os Estados laicistas, no intuito de respeitarem todas as religiões, deviam ter em conta que «nem todas são iguais no seu conteúdo doutrinário» (embora a análise não pertença ao Estado fazê-la), nem nos reflexos sociais (e isto já é observável).

4- O cristianismo vai ao ponto de nos informar que, ao lado da tendência para estabelecer relações positivas, existe no interior do homem uma tendência doentia para o individualismo, o isolamento e a luta: é aquilo que na linguagem catequética se chama «pecado original» e cuja cura requer uma especial ajuda de Cristo redentor. Já no cap. 3 o Papa havia afirmado que «a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretação dos fenómenos sociais e na construção da sociedade», repetindo palavras do Catecismo da Igreja Católica: «ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e dos costumes».

Quem estudou o marxismo sabe que ele assume o facto da luta e da agressividade dos grupos e das classes, a doença antropológica do homem, mas faz dela a regra da acção política, fazendo assim do espírito negativo de competição e de destruição o método salvação do mundo. Fica tudo pior.

Por causa dessa carência de base, o Papa conclui esta reflexão dizendo que «não se pode reduzir a dimensão religiosa adulta à esfera privada». Sem a consciência viva da acção da fé na vida dos cidadãos, nunca venceremos o egoísmo fundamental e a quebra constante das relações humanas. A ideologia laicista e o exercício da razão devem ser permanentemente revistos para não serem geradoras do egoísmo de pessoas e de grupos.

5. Estabelecidos estes alicerces doutrinários, o Papa fala do dinamismo sadio dos vários grupos no seio da sociedade.

Entre eles tem de vigorar sempre o princípio de subsidiariedade, isto é, na organização da sociedade tem de começar-se por baixo, pelo que está próximo das pessoas. Mesmo nos actos de solidariedade deve respeitar-se aquele princípio: os «próximos» conhecem melhor, fazem melhor, são mais justos.

A própria promoção cultural dos povos deve ter em conta as culturas locais, não lhes impondo o cientismo frio e o violento das sociedades tecnicamente mais evoluídas (n. 58). A encíclica fala mesmo de «subsidiariedade fiscal», a política de ajuda aos povos mais pobres e a importação dos seus produtos agrícolas: o fisco deve ser diferente entre as nações e proporcional aos povos integrados em comunidades, isentando os mais pobres das barreiras fiscais ou diminuindo-as. Desse modo, eles poderão verdadeiramente crescer a partir de si mesmos, sem se alienarem em esquemas culturais e económicos desproporcionados ao seu estado evolutivo: a situações desiguais, tratamento desigual.

6- À luz destes princípios, o Papa analisa alguns fenómenos sociais concretos: o turismo internacional, as migrações, o movimento sindical e as finanças.

Cada um desses temas exigiria uma reflexão. Aqui basta situá-los na perspectiva humanista da globalização: o turismo e as migrações devem ser organizados tendo em conta as pessoas e os grupos locais, evitando a exploração dos povos mais humildes e das suas riquezas naturais, incluindo mulheres e crianças; os sindicatos devem interrogar-se sempre sobre quem defendem: se todos os trabalhadores, se unicamente os sindicalizados (e, sem o quererem, transformar-se-ão numa «casta» e contribuir para o desemprego de milhares de trabalhadores); outro tanto se diga das finanças: não procurar o enriquecimento apressado de uns tantos (accionistas e gestores), destruindo o tecido comum, mas contribuir para o crescimento mais lento e harmonioso de todos.

Ao terminar a leitura deste capítulo, fica-se com a sensação de um mundo azul, mas percebe-se o diagnóstico e a receita. Falta coragem para tomar o remédio.

O mundo tem mesmo de ser uma «família», que é o título do capítulo em análise. Paradoxalmente, a época da globalização destruidora é também a época de um ataque feroz à família natural, considerada como algo antiquado. Se calhar, é também por isso que os políticos não atinam com a organização da sociedade por lhes faltar o modelo inspirador! É mais uma advertência para esta sociedade contraditória e um texto profético, uma luz para quem quer ver.

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