2 – Este facto revela o interesse mundial pela Bíblia, e um inquérito recente feito entre nós informa que é crescente o número de pessoas que se aproximam da Bíblia com maior ou menor assiduidade e proveito. Por tudo isso, trago para aqui um conjunto de informações que podem ajudar o leitor.
Em primeiro lugar, não espanta que muitos católicos não gostem muito de ler a Bíblia. Para além da iliteracia generalizada da população, a qual não permite acesso à leitura e percepção da mensagem da Bíblia, há uma carga histórica negativa com sabor a protestantismo: a leitura directa da Bíblia foi apresentada durante séculos como arma de luta contra os católicos, e isso leva tempo a ultrapassar-se, mesmo entre o Clero. Para um católico a fonte primeira da Palavra é a sua proclamação litúrgica e a exposição catequética feita pelo sacerdote. Há nesta atitude bastante fundamento: a fé cristã não vem do livro mas da comunidade e a leitura pessoal da Bíblia é um meio para alimentar a fé de quem já é crente.
Em segundo lugar, convém lembrar que a Bíblia que temos (o Antigo e Novo Testamentos e os respectivos 73 livros) é filha da Igreja, e não a sua mãe. Foi a Igreja que organizou a Bíblia. Durante séculos, houve somente textos de grupos judaicos, algo diferentes entre eles, e, depois apareceram textos cristãos que resumiram a pregação oral da Igreja. Ao lado destes dois grupos, havia outros textos nascidos das seitas dos primeiros séculos da Igreja, os chamados textos gnósticos e fantasistas que circularam em alguns mosteiros cristãos do Oriente. Foi a Igreja que fez a colecção final dos textos autênticos do Novo Testamento, pois sabia o que tinha pregado, rejeitando os textos ditos gnósticos, e os textos vindos do judaismo que se harmonizavam com os do Novo Testamento. Portanto, historicamente, a Igreja é anterior à organização da actual e única Bíblia. A fé dos cristãos vem dessa comunidade anterior à colectânea, da escuta da pregação oral dos pastores da Igreja e não da leitura desses textos que, ou não estavam ainda escritos nem compilados, ou eram de acesso difícil e difícil interpretação. Ainda hoje se continua a ensinar que, rigorosamente, a fé católica não é uma «religião do livro» como acontece com o Islamismo, filho do Corão, nem como o judaísmo, filho da Tora ou Lei ou Escrituras judaicas ou Antigo Testamento.
3 – A posição típica do católico é dar prioridade à Palavra proclamada e escutada nas celebrações e na pregação da Igreja. «A fé vem pelo ouvido», disse Paulo aos Romanos, é filha da pregação da Igreja, e pobre de quem nasceu fora de uma família praticante, porque não tem raízes e olhará para a Bíblia como um livro escolar e será tentado a lê-la com espírito de ruptura. Esta última posição é a atitude típica do cristão nascido da Reforma protestante e mais ainda dos laicos: vão directamente à Bíblia, lendo-a com critérios literais ou esperando que o Espírito Santo lhe diga o que deve acreditar e fazer, sem ter em conta a voz da Igreja; o laico lê a Bíblia de modo racionalista, bloqueado a sete chaves.
Nestes cinco séculos posteriores à Reforma Protestante, vimos nascer e multiplicarem-se grupos e grupinhos, igrejas e seitas, algumas delas caídas em total desordem moral e mesmo na descrença e no fanatismo. O caso do regresso de muitos anglicanos indignados com a evolução que a fé cristã teve entre eles é um sintoma.
4 – O que fica dito não significa que o católico não deva ler a Bíblia, amá-la e rezar com ela. Pelo contrário, é tempo de fazer essa leitura respeitosa e piedosa, mas essa leitura tem de fazer-se como quem lê a história da sua família, do fim para o princípio, e nunca ir lá buscar argumentos para se afastar da Igreja duvidando do seu ensino. Uma tal leitura estaria historicamente inquinada deste o início e iria distorcer a assimilação da mensagem.
A leitura histórica e religiosamente correcta da Bíblia deve começar pelos Evangelhos, pois é para Jesus que converge toda a história bíblica, quer explicitamente, quer de forma simbólica. Os Evangelhos são o coração donde parte todo o sangue e para onde tudo volta.
O diálogo com os cristãos protestantes e ortodoxos acerca da leitura da Bíblia vem a processar-se hoje com serenidade, afastando alguns preconceitos históricos mútuos e tentando encontrar o fio rigoroso do texto. Com os judeus o diálogo bíblico é mais delicado porque, ao rejeitarem todo o Novo Testamento, ficam sem chave para abrir o Antigo Testamento, uma espécie de tronco sem folhas nem flores, sem sinais do futuro, como testemunham os convertidos do judaismo. Causa pena ver e ouvir judeus estudiosos da Bíblia que, no final, se confessam ateus! Perderam toda a sinalização do Velho Testamento, transviaram-se no caminho e reduzem tudo a fantasias. Numa viagem que há anos fiz à Palestina, o guia judeu informou que, nas escolas de Israel, a Bíblia é usada como fonte de informação geográfica e histórica do povo de Israel, e só para grupos restritos de alunos e a pedido dos seus pais é que é usada como um livro religioso. Por isso, a maior parte dos judeus é agnóstica ou ateia, racionalista, dada ao comércio, e os tais grupos são fundamentalistas. A leitura que fazem da Bíblia não tem unção e orientam-se para um futuro vago e sionista.
Tudo isto nos conduz àquilo que dissemos acima e que o Papa lembrou há semanas aos professores e alunos do Instituto Pontifício Bíblico: «a Bíblia é um todo, tem um fio condutor que é Jesus Cristo, e só quem a lê na sua totalidade poderá perceber a sua estrutura interna e o seu dinamismo». «Não deve ser lida unicamente como fonte de «informação cultural», mas instrumento de oração».
Em conclusão, é preciso ir para a Bíblia com alma grande, como quem lê um poema sobre o plano de Deus para o mundo e com vontade de rezar, colocando-se acima da pequenez de quem procura pedras para atirar aos outros. A iniciação ao uso da Bíblia requer a ajuda de alguém com piedade e instrução, mas depois navega-se no mar alto em velocidade de cruzeiro.