Dos monumentos cristãos os mais vulgarizados são os nichos das «alminhas». A «oração pelos defuntos» dirige-se a Deus por meio de Jesus e não aos mortos. Porque a realidade da morte se enquadra naturalmente no clima outonal da caída da folha, na redução das horas de sol em cada dia, na humidade e nevoeiro que toldam os horizontes, o mês de Novembro foi pedagogicamente escolhido para essas devoções. Os médicos, psicólogos e psiquiatras dizem mesmo que neste mês há uma tendência maior para as depressões e óbito.
Fora da área cristã, a festa celta do Halloween, celebrada no fim de Outubro e primeiros dias de Novembro e trazida das nações anglosaxónicas pelos meios de comunicação social com o nome de «festa das bruxas», aproveitou o clima outonal e encheu-o de ritos pagãos de almas e de bruxas. Devido à lentidão das mudanças culturais e à tentação do refluxo comercial, torna-se necessário que o cristão, ao mesmo tempo que reza pelos defuntos no mês de Novembro, se enquadre culturalmente no esquema mental da fé católica, não aconteça andar a misturar celebrações cristãs com o quadro mental pagão. Temo que isso possa acontecer.
2 – A mensagem cristã anda frequentemente envolta em formas populares, belas e afectuosas, mas nem sempre rigorosas. Actualmente, a teologia católica tem feito uma reflexão mais cuidada de tudo o que se relaciona com a morte e a eternidade.
Para um cristão, o enigma da morte é iluminado pela morte e ressurreição de Jesus Cristo, a única pessoa «que traz consigo as chaves da morte». Pelo baptismo fomos enxertados n’Ele, celebramos a sua ressurreição em cada Domingo, vivemos os sacramentos como acções de Jesus ressuscitado em nós mesmos, e morreremos unidos a Ele. Ainda que este vínculo a Jesus ressuscitado não responda a todas as perguntas da nossa curiosidade, a certeza de que «morrer é partir e ir com e para Jesus ressuscitado» suaviza e ilumina a nossa angústia existencial. É esse o sentido da Cruz pascal que abre o cortejo fúnebre do cristão e do Crucifico colocado no caixão.
A linguagem humana sobre aquilo que se passa depois da morte, já fora do espaço e do tempo – o Juízo, o Purgatório, o Céu e o Inferno – tem de fazer–se com as categorias do espaço e do tempo, um «lugar» e uma «duração». Do Juízo temos um esquema algo teatral: um julgamento com advogados de defesa e de acusação (S. Miguel e diabo em discussão) e a sentença final; do Purgatório, a ideia popular de sofrimento, longo e suave; do Céu, um lugar de felicidade; e do Inferno, o desespero.
É impossível evitar essas categorias. Mas a teologia recente, mais objectiva e racional, procura fazer a reflexão acima dos quadros espaço-temporais, de modo a responder à antropologia e a analogia da fé. Para não citar outros teólogos, trago para aqui a reflexão de Bento XVI já ensinada no tempo de professor e retomada agora na «Encíclica sobre a Esperança».
3 – Sobre a Vida eterna, a atitude primordial é captar a sensibilidade do homem moderno e saber se ele estima mais a vida ou a morte, se deseja viver ou aniquilar-se. Essa predisposição psicológica é fundamental para se raciocinar e abrir-se à fé. Bento XVI esquematiza dizendo que a hipótese de uma vida permanente do homem na terra (o sonho de todo o progresso) é uma fantasia impossível e tornar-se-ia até um martírio para todos, pois incluiria todo o tipo de idosos e incapazes. Nesse sentido, a morte física é uma libertação. Mas essa morte física, entendida como aniquilação da pessoa, tranquiliza-nos? Satisfaz-nos a mera «imortalização» que resulta da colocação de uma placa na rua, da erecção de um monumento, da memória deixada no coração dos familiares e dos amigos?
Há quem adie sempre o pensamento da eternidade, abafando-o com ruído de palavras, com álcool, sexo e drogas, ou se perca na discussão do corpo, da alma e do «eu». A resposta cristã é que o «eu» (é melhor dizer assim que dizer «alma» como um pedaço de cada um) é imortal, ainda que na terra não seja sempre consciente, e, ao morrer o homem, há um acordar profundíssimo, um salto de vitalidade anímica. Ao deixar os quadros do espaço e do tempo e entrar na eternidade, o «eu» pessoal torna-se mais acordado que nunca pelo desaparecimento das limitações antropológicas.
4 – Sobre o Juízo e o Purgatório, Bento XVI diz que tudo se passa na hora da morte, no encontro com Deus. Na claridade absoluta que nos envolve, à maneira do doente que, no final de rigorosos exames médicos, toma consciência do real estado de saúde, o valor do seu «peso» ontológico, a pessoa sentir-se-á triste pela ligeireza com que encarou a vida ou feliz ao ver confirmado o seu empenho de amor. O Juízo e o Purgatório estão nesse «cair em si». A intensidade dessa «dor» é variável, e, como não temos meios para traduzir essa «avaliação», a linguagem popular recorreu aos «dias, meses e anos de Purgatório» que são a medida da duração terrena. A reflexão tem de fixar-se na densidade do encontro, na alegria ou mágoa, e como «um dia com Deus são mil anos e mil anos são um dia», compreendemos que a «duração» do Purgatório é o modo de exprimir a intensidade do encontro; em segundo lugar, fixarmos que esse encontro se faz na comunhão dos santos, confortado pela oração da Igreja, pois o cristão vive em comunhão permanente antes e depois da morte. A oração de sufrágio que se faz «antes» e «depois da morte» só é anterior e posterior à morte dessa pessoa no nosso calendário, pois, fora do tempo, tudo é contemporâneo.
Acerca do «fogo», que necessariamente não pode ser material, escreve Bento XVI: «O fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, Juiz e Salvador. Ante o seu olhar funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta, tornando-nos verdadeiramente nós. As coisas edificadas na terra podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice a desmoronar-se. Na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo da nossa vida se tornam evidentes, está a salvação: o seu olhar, o toque do seu coração, cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa, «como pelo fogo». Contudo, é uma dor feliz em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, possibilitando-nos sermos totalmente nós mesmos e totalmente de Deus» (Encíclica sobre a Esperança cristã, 47).
Sobre o inferno e o céu, continua o Papa: «pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor, pessoas nas quais tudo se tornou mentira, pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever de forma assustadora perfis deste género. Em tais indivíduos não haveria nada de remediável. É já isto que se indica com a palavra «inferno». Por outro lado, podem existir pessoas puríssimas que se deixaram penetrar inteiramente por Deus e, consequentemente, estão totalmente abertas ao próximo e a sua chegada junto de Deus apenas leva à plenitude aquilo que já são» (n.45).
Esta reflexão teológica cristã não responde à sensibilidade, mas satisfaz um pensamento adulto. É esse esforço que é preciso fazer: aliar os afectos à reflexão, e é esse o grande desafio que a Igreja faz a crentes e não crentes.