2 – Seria interessante analisar por que é que o mês de Novembro anda associado à oração pelos mortos. Provavelmente, por se tratar de um período outonal, o final de um ciclo agrário: terminaram as colheitas e começa para a terra um período de descanso. É natural que a sensibilidade humana passe dessa experiência à reflexão sobre a vida humana, também ela sujeita ao ciclo do nascimento, da juventude, da fertilidade, da velhice e da morte.
Já entre os celtas a aproximação das sombras do Outono gerou festas religiosas de bruxas e duendes, festas que a evangelização cristã substituiu pela festa dos Fiéis defuntos, tornando aquelas estranhas à nossa cultura mas que o comércio e a curiosidade jornalística têm trazido até nós.
Cingindo-nos ao nosso calendário e aos nossos costumes, é um facto que o mês de Novembro arrasta aos cemitérios multidões de pessoas. Quem passa pelo Marão nesta data pode observar que o número dos que sobem o monte em direcção a Vila Real é maior do que o daqueles que o descem, invertendo-se o percurso da parte de tarde. Em toda a região transmontana, como no Norte de Portugal, são ainda muitos os nichos ou «alminhas» a lembrar a doutrina católica sobre o Purgatório.
Este e outros factos, como o cuidado posto na celebração e assistência aos funerais e a dispensa oficial do trabalho concedida aos enlutados, demonstram a importância da morte na cultura e comportamentos locais.
3 – Geralmente, a morte é precedida de doença mais ou menos longa, ainda que, devido a acidentes, haja cada vez mais mortes imprevistas. A pergunta pelos cuidados médicos e hospitalares é recorrente, e, conexa com tais doenças, anda a morte e a pergunta pelo depois da morte. Esta interrogação aparece em toda a vida e agudiza-se com a debilidade física. Porque faz parte da estrutura pessoal do doente, não é possível cuidar dos doentes sem cuidar da resposta a esta pergunta que, velada ou às escancaras, nos assalta, e está na raiz da tensão nervosa, da agitação, da insónia e de outros fenómenos. Quem andou por hospitais sabe perfeitamente que é assim, e não são raros os cirurgiões que, na preparação dos doentes, lhes recomendam um esforço de optimismo, que os doentes vão buscar às suas convicções religiosas mais profundas.
Por tudo isto, a assistência religiosa aos doentes faz parte dos cuidados de saúde, ultrapassam aspectos puramente cultuais. Durante a I Grande Guerra, as autoridades militares republicanas sentiram o dever de proporcionar aos soldados portugueses a presença de capelães militares, cujo comportamento exemplar acabaria por mudar a ideia que a República tinha do clero. Não bastou no caso, nem basta hoje, dizer aos doentes que, em caso de aflição, se chama um padre, pois o sentimento de fragilidade do doente robustece-se com os serviços correntes do padre. Este não é o homem para depois da morte, mas antes. O doente tem a sua psicologia, diferente do homem de saúde, e deve ser ela a comandar a organização logística do hospital, como se vem a entender por toda a parte.
4 – Voltando à cultura transmontana sobre a morte, a pergunta pelo Além faz-se desde a pré-história. Basta olhar para os nossos montes e para a abundância de antas, mamoas, dólmens, arcas, dornas, dorcas e palas, geralmente voltadas a nascente e à luz solar, entendida como fonte de vida.
Na pergunta pela vida além da morte está incluída a pergunta pela possível ajuda que os vivos podem prestar aos mortos e pelo hipotético intercâmbio dos mortos e dos vivos. Dessas interrogações nasceram, nas culturas orientais, a metempsicose e a reincarnação das almas para sua purificação; nas culturas do Brasil de toda a América do Sul, o espiritismo e o seu cortejo de médiuns; e na cultura africana uma série de truques de feitiçaria que perturba toda a vida dos vivos enlutado. Os próprios hebreus acreditavam na vinda dos mortos, como se depreende da reacção do povo aos milagres de Jesus
Entre nós, a doutrina católica sobre o Purgatório traz a resposta à inteligência e ao coração, ao sentido de justiça e de misericórdia. Em toda a região transmontana ainda são muitos os nichos ou «alminhas» a lembrar essa verdade da fé. Restam, contudo, manifestações daquela cultura arcaica, com «almas penadas», aparições de mortos, «encostos» e outras superstições, agora agravadas pela presença de imigrantes brasileiros e africanos que estimulam esses ritos, e que em nada ajudam a ultrapassar comportamentos doentios. Dizia-me um missionário que, na morte de um africano, o pior não é a sua morte, mas o sarilho que ela irá provocar aos vivos convencidos de que o morto aparece por todo lado para os afligir. Mesmo africanos adultos letrados nas escolas europeias não conseguem libertar-se dessa mentalidade africana acerca dos mortos e, regressados, a África, retomam os rituais indígenas. O contacto com outras culturas torna hoje mais vivo e eloquente a mensagem do Crucifixo, Jesus morto e ressuscitado, libertador das sombras da morte, não como mero companheiro da morte, mas como ícone da vitória sobre a morte.
Há anos, integrado num grupo de turismo, passei por uma região muçulmana, e, ao ver o cemitério cheio de silvas, uma mulher do grupo não se coibiu de manifestar ao guia a sua estranheza, ouvindo dele a resposta de que os mortos muçulmanos estão em paz. «Pelo menos estão abandonados», foi a resposta ladina daquela trasmontana.
Na actualidade, parece apagar-se em muitos a crença na Eternidade, e a essa mudança cultural se referiu o Papa Bento XVI sua viagem a Portugal. Para isso contribui a vida actual, nervosa e agitada, que não deixa tempo para pensar, e também a metodologia científica que educa somente para o laboratorial, o experimentável. O uso excessivo dos audiovisuais concorre para o embotamento do espírito, torna-o prisioneiro do «que se vê e do que se ouve». Esses andaimes acabam frequentemente por se desmantelar naquelas horas em que a nossa vida, o nosso «eu», é posto em nossas mãos como um tesouro de luz que não cabe no que os olhos viram nem no ruído que os ouvidos escutaram, e se nega a desaparecer no abismo do nada e do silêncio.
A vivência cristã do mês de Novembro dá profundidade e comprimento à vida pessoal e familiar. Há mais de vinte anos, quando já estava nomeado Bispo para Vila Real, passei pelo Porto num dia de Novembro e fui abastecer o carro perto da Boavista. O operário que me serviu, soube depois, era transmontano. Após uma breve apresentação a três, o responsável pelo posto de combustíveis disse-me, entre a admiração e a estima, que «àquele trabalhador podia pedir qualquer horário de trabalho, mas em Novembro tinha de ceder as duas horas das seis às oito para ele ir a três missas pelos seus mortos»!