Há uma velha crença galega de que a certos santuários “aquele que não vai de vivo vai de morto”. Outros Cristãos, na impossibilidade física de fazer a peregrinação, encomendavam a alguém que o fizesse por si:
“Onde vai no seu cavalo? / A Santiago de Compostela, meu Senhor / Tome lá este dinheiro e ponha por mim uma vela no altar do Santo”.
(Carlos Gil, em “Tempo Livre”, revista do INATEL – dezembro de 1990)
O culto a São Tiago é um dos mais fascinantes de sempre. Todo o mundo (cristão ou não) se predispõe a visitar o seu túmulo.
Os caminhos de Santiago são percorridos, cada vez mais, por gente de Fé, bem como por aqueles que pretendem também a aventura, a natureza, o ambiente, a viagem empolgante, a superação, a aposta, o cumprimento de promessas, a cultura e a troca de experiências. Gente que segue a pé (a maior parte), de bicicleta (já em número muito significativo) ou mesmo a cavalo (mais raramente).
“A caminho de Santiago ia uma alma peregrina
uma noite tão escura que nem uma estrela luzia
por onde a alma passava a terra se estremecia
aonde vais alma santa com tão grande gritaria?
Caminho de Santiago a cumprir a romaria”
Um temperamento arrebatado
Filho de Zebedeu e Salomé, irmão mais velho de São João Evangelista, Tiago era natural de Cafarnaum, em Betsaida, região costeira. Dedicava-se à pesca.
Foi sempre muito próximo do Mestre, de quem foi Apóstolo. Jesus chamava-lhe “Filho do Trovão”, dado o seu temperamento arrebatado. Percorreu muitas regiões a converter povos ao Cristianismo, sendo conhecido pelas suas decisões e processos nem sempre ortodoxos. Foi Padroeiro da Reconquista Peninsular, terá aparecido nos céus a apoiar e incitar os Cristãos na batalha de Clavijo, contra os mouros.
Para além de São Tiago, o Maior, o “Dicionário de Santos” de Jorge Campos Tavares (“Lello & Irmão, 1990) revela também, o Apóstolo Tiago, o Menor; e Tiago (Jacob ou Jaime) de Marca, pregador franciscano nascido em Itália, no século XV.
Os Caminhos de Santiago
De Sul para Norte, Portugal possui trajetos tradicionais conhecidos por “Caminhos de Santiago”: uns mais extensos, outros menos, uns mais frequentados outros nem tanto, alguns deles principais e outros secundários. Os Caminhos de Santiago ocuparam paulatinamente as rotas comerciais que eram estabelecidas na Idade Média, aperfeiçoadas aos poucos, melhorando as acessibilidades de quem as percorria a pé, de carroça e a cavalo. Havia rotas interiores, raianas, litorais, junto aos rios e passando nas vizinhanças de castelos e igrejas, desde as maiores às mais singelas. Algumas destas capelas e igrejas ganharam, com a passagem do tempo, o estatuto de “Capelas de São Tiago” e passaram a fazer parte dos trajetos dos romeiros que seguiam para Compostela.
“Pelos Caminhos de Santiago, desde tempos remotos até séculos recentes, circulou, cresceu, consolidou-se e foi partilhado muito do saber europeu, da arquitetura à literatura, das artes de cavalaria ao pensamento. O Caminho de Santiago é um concentrado de vida repleto de metáforas, onde encontramos um pouco de tudo. Basta sabermos olhar e ouvir. Ler o que vivemos. Do esforço à recompensa, das tentações do atalho ao prazer de não nos desviarmos, este é um caminho que nos devolve aquilo que tiramos a nós próprios: tempo, silêncio, introspeção”
“In/Corporate Magazine” – junho 2021
Um dos maiores e mais expressivos caminhos que levam os peregrinos a Compostela é o “Caminho Português Interior de Santiago”. Para além da extraordinária diversidade das pessoas e dos seus costumes, das espécies, da geomorfologia entre montes, vales e cursos de água, o seu itinerário é extenso. Nele convergem muitos outros caminhos transversais, como se fosse um grande rio no qual desaguassem vários afluentes.
Este trajeto é uma das antigas rotas portuguesas que liga Viseu a Chaves, atravessando oito Municípios (Viseu, Castro Daire, Lamego, Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar e Chaves), cruzando a fronteira e ligando diretamente à capital da Galiza. Foi o primeiro itinerário português classificado como “Rota Cultural Europeia”.
Os municípios e as apostas
De Lamego se diz que, em 1683, um peregrino inglês recebeu do Cabido da Sé a quantia de 250 réis para poder prosseguir a sua caminhada para Santiago de Compostela. Em Peso da Régua, na atualidade, há uma ponte metálica acessível pedonalmente para atravessamento do rio Douro. Antes, a travessia era feita através de pequenas pontes de pedra ou de madeira ou através de barcaças.
Em Santa Marta de Penaguião se diz que “sem pão e vinho não se faz caminho”. Nesse particular, Santa Marta é generosa, pelos produtos que possui que fazem revivificar os corpos nas caminhadas.
O município vila-realense é um território com o mais amplo património cultural e religioso no caminho que nos leva ao sítio do Jacobeu e localidades de significado histórico especial, de Relvas a Vilarinho de Samardã.
No concelho de Vila Pouca de Aguiar o caminho é na generalidade plano. Atravessa o grande Vale (Sul e Norte) do Corgo. Está provado que o atual Caminho de Santiago coincide com a Via Romana que impulsionou o desenvolvimento da atividade mineira e da Estrada Real que uniu os locais de capacidades termais (Pedras Salgadas e Sabroso).
Em Chaves, os peregrinos despedem-se do território português pela terra raiana.
Do ponto de vista religioso, a Igreja afirma que quem realiza o caminho com o intuito espiritual terá os seus pecados perdoados por S. Tiago. Muitas pessoas fazem o caminho naturalmente por Fé. Outras por razões que se prendem com o turismo clássico ou moderno (saúde, negócios, religioso, de natureza) e a aventura em permanente contacto com a natureza.
Albergues
“Os caminhos portugueses de Santiago nunca tiveram tanta procura. A tendência é para crescer. A economia local – hotéis, restaurantes, mercearias – é que está a ganhar”.
(Sónia Santos Pereira, in “Dinheiro Vivo / JN -outubro de 2018)
Em “Regresso aos Caminhos de Santiago”, no jornal “Reconquista”, de Castelo Branco, em 1989, escrevia-se: “Mais do que fazer romagem pelas terras da céltica e verde Galiza, ir a Santiago é peregrinar no tempo. Entrar na comunhão de uma fé que vem já desde os primeiros séculos, quando caminheiros de toda a Cristandade, seguindo os lajedos das velhas estradas romanas do tempo ainda da ocupação se dirigiam de todos os lados a venerar o túmulo do Santo Apóstolo” (Cf. M. Ferreira da Silva). E, mais à frente, o articulista referiu: “Hoje vai-se e vem-se num dia. Mas, nos velhos tempos, tinham os romeiros de fazer a pé os caminhos e pernoitar por favor em albergarias, pousadas, estalagens e hospedarias que se multiplicavam ao longo dos caminhos”. Uma tradição que agora regressa com a adaptação de edifícios atuais a essa prática de recolhimento e alojamento.
“Depois de haver morrido em Jerusalém o Apóstolo Tiago, os seus discípulos Atanásio e Teodoro recolheram os seus despojos e, embarcando com o Santo Corpo, foram abordar às costas de Espanha”
Encíclica
do Papa Leão XIII
O culto em redor do túmulo do Apóstolo Santiago aparece já mencionado no “Martirológio de Leão”, com data do século IX, consignando uma fé que já vinha dos tempos mais antigos e que, apesar de interrogações múltiplas levantadas em torno da “Questão Jacobita” nunca desmereceu da credibilidade devida a um acontecimento que as fontes bibliográficas mais consideradas consagram como um facto histórico-universal.
O túmulo do Apóstolo contém uma urna de prata que se encontra na cripta da capela-mor.
No “Xacobeo”, o “Botafumeiro” é um gigantesco turíbulo também de prata que é suspenso na cúpula do transepto e, baloiçado por cordas puxadas por um grupo de homens possantes, defuma o recinto da catedral de uma ponta à outra.
O cajado, a cabaça e a vieira
O santo vestido de romeiro aparece na Idade Média, quando se desenvolve a peregrinação e a romagem a lugares de milagres ou túmulos de santos de grande devoção como manifestação de Fé. A maior per egrinação que então se fazia era à Terra Santa. Seguia-se, por ordem de importância, a ida a Roma, depois a Santiago de Compostela.
A indumentária caraterística do romeiro era o chapeirão (chapéu de grandes abas), bordão ou cajado, muitas vezes com uma cabaça onde se levava que beber, romeira (capa curta) e uma concha nas vestes para recolher água das ribeiras. Essa concha de vieira é o emblema, o distintivo da romagem a Santiago de Compostela.