Por isso, gosto de ler a reportagem que fazem da nossa terra os estrangeiros que nos visitam: trazem a frescura de quem vê as coisas pela primeira vez e, frequentemente, fazem ver aspectos menosprezados ou mesmo desconhecidos dos residentes. É também por isso que gosto de ler o relato dos convertidos à fé católica. São os visitantes da fé, fazendo cada um o seu percurso para entrar na Igreja até chegar à praça central do mistério da Igreja, fixando-se neste ou naquele mistério da fé: uns ficam esmagados pela beleza da Eucaristia, outros pela paz da Confissão, outros pelo ministério do Papa, outros pelo mistério da unidade e trindade de Deus e sua proximidade, outros pelo impacto da fé cristã no mundo presente, ela que parecia só preocupada com o céu.
Paulo é um desses casos exemplares: é o judeu deslumbrado pela pessoa de Jesus e pela clarificação da Escritura. Sente a novidade de Jesus de Nazaré, o Messias situado nos antípodas do que programava o judaísmo oficial, o escândalo do Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado, e vê que Jesus é a chave do Antigo Testamento: deixa de ser um livro labiríntico, nacionalista, fechado a sete chaves, para se transformar no anúncio antecipado do que viria a ser depois claramente exposto.
2 – Mas há na da vida de Paulo um tema para o qual gostaria de chamar a atenção na semana do Pentecostes: o Espírito Santo e a liberdade interior daí nascida.
Como judeu, Paulo não conhecia o Espírito Santo, que não havia sido revelado no Antigo Testamento, embora, de facto, já estivesse presente na Criação e actuasse nos profetas. No plano histórico da revelação, o Espírito seria dado a conhecer por Jesus e seria publicamente enviado sobre os Apóstolos depois da Ascensão.
Paulo havia sido educado no cumprimento rigoroso da lei judaica segundo a escola do farisaísmo, uma espécie de confraria para judeus piedosos, «extremamente zeloso das tradições de meus pais», diz ele próprio. Entendia-se que Deus morava longe do homem e este tinha de caminhar sozinho ao seu encontro. A salvação assumia-se como uma conquista do esforço pessoal, uma espécie de estoicismo religioso. Paulo confessará mais tarde que era uma lei pesada, violenta, exigente, lei da carne e do sangue, que poucos suportavam (circuncisão, selecção de alimentos, contacto com estrangeiros, ritual de abluções), lei de «escravos» na medida em que se pedia a obediência rigorosa, sem outra consolação além da satisfação de «ser cumpridor», como desabafava no Templo o fariseu cumpridor!
Quando foi envolvido pela luz do Ressuscitado, Paulo sentiu que fora «apanhado» pelo amor de alguém, abraçado e revestido por dentro de uma «força e luz» que dinamizou a inteligência, fortaleceu a vontade, aqueceu a sensibilidade. Foi como se lhe fosse dado um par de asas para voar, um coração novo para sentir a Deus. A partir daí, Paulo entende de modo diferente o mistério íntimo de Deus e a sua relação com o homem e deste com Deus: Deus não se limita a colocar uma lei diante do homem impondo-lhe a obrigação de a seguir, mas «vem em auxílio do homem», dá-lhe o Espírito que o «justifica», ajuda-o a entender-se a si próprio, a conhecer Jesus como Senhor, a saber rezar, a vencer as provações da fé. Mais que um conquistador de Deus, o cristão é alguém conquistado pela iniciativa divina, e a atitude religiosa fundamental será «ouvir», «escutar» e, depois, «corresponder», «dar graças», ciente de que nada tem que não haja recebido.
Paulo sente-se «liberto do peso e multiplicidade de prescrições da lei moisaica». Esta libertação (convém lembrá-lo sempre nesta nossa época de libertinagem) não é a ausência de leis, mas a relação afectiva criada pelo Espírito no coração humano, um impulso e ritmo pessoal que torna o homem capaz de vencer tendências egocêntricas. Paulo nem gostará de estabelecer muitas regras, temendo que os cristãos se fixem nesses mínimos, e não corram ao sopro do Espírito. Como diz Bento XVI, «o homem é livre porque dependente de Deus», tal como a árvore se liberta da terra pela força do sol que a invade e atrai.
3 – Paulo não faz uma exposição sistemática sobre o Espírito Santo. Fala do Espírito Santo de modo experimental, sobretudo na carta aos Romanos (8), na carta aos Gálatas (5), na carta aos Coríntios (12;13;14) e na carta aos Efésios (4), para esclarecer o comportamento cristão. O Espírito Santo é distinto do Pai e do Filho, é o Espírito de Deus (Pai), Espírito de Cristo, Espírito de Santidade, mas as três pessoas são inseparáveis. A exposição sistemática seria feita mais tarde conjugando S. Lucas, S. João e S. Paulo, e a reflexão dos capadócios (S. Basílio, S. Gregório de Nissa e S. Gregório de Nazianzo), de que o Papa João Paulo II faz uma síntese na encíclica «Dominum et Vivificantem»
Nas palavras de Jesus o Espírito Santo nunca aparece como «gerado», mas diz-se que «procede do Pai» e umas vezes afirma que será enviado pelo Pai ( Jo 14,13,26) e outras vezes que «eu vo-Lo enviarei»( Jo 15,26). Não incarnou como o Verbo, não tem um rosto humano, não se vê nem se toca. É um «Ele» e revela-se por símbolos (fogo, línguas, vento, brisa, pomba). Quem ler a Bíblia de modo fundamentalista corre o perigo de não ultrapassar esses símbolos. Todavia Jesus fala do Espírito como alguém designado por um «o» de pessoa: «Ide e baptizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», e com uma acção específica: Quando vier o Consolador que vos hei-de enviar da parte do Pai, o Espírito da Verdade que procede do Pai, Ele testemunhará de Mim e vós também testemunhareis. Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a Verdade total, porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e glorificar-me-á porque há de receber do que é meu. (Jo 14, 26; 15, 26; 16, 13).
Portanto, o Espírito Santo não ensina doutrina diferente de Jesus, mas faz perceber a mensagem de Jesus «recordando-a», passando-a pelo coração. É humilde, discreto, mas activíssimo: une, faz comunhão. Paulo dirá que o Espírito actua no íntimo dos corações por gemidos inenarráveis A acção do Espírito Santo é comparável ao perfume da flor plenamente desabrochada: podemos ver a cor das pétalas, as folhas e o caule das flores, mas o perfume, que aparece tarde, na plenitude da flor, é invisível e livre, invade o espaço para além dos olhos e das mãos. O Espírito não tem barreiras, age dentro e fora da Igreja, mas tudo encaminha para ela como o perfume que arrasta para a árvore donde deriva.
4 – A vida do cristão é inseparável do Espírito Santo, seja na catequese, seja na reflexão teológica, seja na liturgia da Palavra e dos Sacramentos, seja na oração, seja no governo da Igreja, seja na actividade no mundo. O esquecimento do Espírito Santo está na base da actual crise da fé. Pelos riscos de atribuirmos ao Espírito as nossas fantasias, convém recordar o ensino de Paulo de que pertence à autoridade da Igreja ajuizar dos carismas. A ela incumbe também julgar da revisão das Constituições e pronunciar-se sobre a santidade heróica dos fiéis (LG 7, 12).
A leitura das cartas de Paulo, o crente que fez a experiência de viver na ignorância do Espírito Santo, pode ajudar a sentir a novidade do Espírito Santo.