Segunda-feira, 9 de Dezembro de 2024
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O Ano Paulino: Carta de Paulo aos Transmontanos

1 – Depois das três viagens que fiz por cidades antigas – Antioquia, Éfeso, Tessalónica, Atenas, Corinto, Filipos, Roma e Jerusalém, e várias na Galácia, – visitei as aldeias, vilas e cidades da Diocese de Vila Real, que trago no coração. Agora que estou mais velho e sinto não poder visitar-vos novamente, escrevo-vos esta carta para vos agradecer o acolhimento que me destes, semelhante ao dos Filipenses, onde nada faltou: pão e vitela de Barroso; azeite de Murça e de Valpaços; vinho maduro do Douro e verde de Ribeira de Pena e de Mondim; águas das Pedras, de Vidago e de Carvalhelhos; presunto de Boticas e cordeiros de Alijó; fruta da Terra Quente, castanha de Carrazedo de Montenegro e da Campeã em Vila Real, mel e doces de toda a parte. Aproveito para vos manifestar algumas preocupações de natureza económica e de índole cultural. Andam interligadas.

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Vida centrada nas Cidades

2 – Senti que o povo está a fugir das aldeias para as vilas e cidades, em busca de trabalho, de melhores condições de vida e de conforto: serviços de saúde, escolas e ensino, comércio mais alargado, negócios de casas e de terrenos. Alguns vão para o estrangeiro, como os antigos judeus que encontrei por toda a parte. Realmente, tendo de pagar sementes, fertilizantes, sulfatos e salários ao preço da indústria e vender os produtos da terra ao preço da chuva, a terra fica para distracção dos reformados. As cidades, um mundo que eu conheço razoavelmente, são outra vez os centros de tudo: da economia, da política e da cultura difundida pelos jornais, rádios, escolas e televisões. Por isso, é necessário evangelizá-las. Lembro-vos que a vida nas cidades tem os seus riscos: há mais massificação das pessoas, perdem-se as relações pessoais e de vizinhança das aldeias, o sentimento de pertença a uma paróquia, e aumenta a confusão de ideias, de seitas e de partidos políticos, como aconteceu em Éfeso e em Roma.

Nos centros urbanos de Trás-os- -Montes aflige-me ver adultos escondidos a viver à custa de jovens, buscando lucros chorudos e rápidos com o pó que não vem da terra nem do suor do trabalho do dia. Misturado com isso, há emigrantes transmontanos regressados e outros de terras vizinhas que trouxeram para Trás-os–Montes outro negócio desastrado: o negócio de mulheres. Herdeiros dos traficantes de mulheres de Corinto, são uma praga e essa praga pode vir a refinar com o turismo.

 

Jovens e Escolas

3 – Por serem o futuro, preocupa–me muito a vida das crianças e dos jovens. Nas cartas que escrevi aos cristãos das cidades antigas, quase não falo das crianças e dos jovens porque eles não eram um problema social e passavam o tempo junto dos pais em famílias alargadas, e aí participavam nas reuniões da fé que se faziam à noite nas casas de família. Ainda me recordo de um jovem que em Tróade caiu da janela do segundo andar de uma casa onde se fazia a reunião mas, com a bênção de Deus, voltou à vida.

Hoje, as crianças e os jovens saem muito cedo de casa, passam o dia longe do olhar dos pais, entregues a eles próprios e a professores estranhos, e tornam-se precocemente independentes. Verifiquei que alguns vagueiam pelos jardins, pelas ruas, pelos cafés e bares e clubes nocturnos; outros passam o tempo isolados no quarto, sentados junto de computadores a fazerem viagens imaginárias pelo espaço, criando laços de amizades sem rosto, com desconhecidos, e a ver fantasias eróticas. Isso tira-lhes o sentido da vida real, torna-os incapazes de falar com pessoas de carne e osso, fogem das celebrações religiosas e formam bandos fechados, à margem dos adultos. Trazem na cabeça uma enorme confusão de ideias e sentimentos e, parecendo saber muito, ignoram as coisas fundamentais. Mesmo os que frequentam Universidades e Escolas Superiores têm uma cultura frágil, mal estruturada, sem raízes profundas e sem janelas abertas para Deus.

Em tudo isto tem muita responsabilidade quem manda nas escolas, carecidas de um verdadeiro programa de ensino e dificultando o trabalho de quem queira falar de Jesus às crianças e aos jovens. Alguns pais, por moda e por medo de serem antipáticos, ainda agravam a situação: levam os filhos para a ginástica, para o ballet, para a piscina, para o Conservatório de música, nas horas em que deviam ir para as aulas de Moral, para a catequese e para a Eucaristia. Estão a criar uma geração de laicos, pretensamente evoluídos. Mais tarde, repetir-se-á o que aconteceu comigo em Atenas: quando eu falava aos adultos no areópago sobre Jesus morto e ressuscitado, chamaram-me papagaio e viraram-me as costas. Só lhes interessava conversa fiada de filosofia estóica. Isso já acontece agora na idade juvenil: ao chegar a idade do crisma ou do casamento, precisam de cunhas, de todas as dispensas do bispo e de uma condescendência especial para caberem nas festas cristãs. Cresceram à margem, sem oração, sem missa, sem sacramentos, e ficaram com umas generalidades insuficientes. Nem parecem transmontanos: moles, sem espírito de sacrifício, sem alegria. De entre tais jovens, onde é que se pode arranjar um novo Timóteo, um novo Tito, ou mesmo um Epafras, um Tíquico um Epafrodito, ou uma mulher como Lídia e Febe ou um casal como Áquila e Priscila para servir a Igreja?

 

Educação da Sexualidade

4 – Por falar de jovens, não posso deixar passar em branco a ligeireza como nas escolas se fala da sexualidade. Baralha-se tudo, confundindo educação sexual e afectiva com informação técnica anticonceptiva e abortiva. Parece que, desde que não haja doenças nem mães adolescentes, o Estado tudo permite! Até oferece abortos gratuitos. Uma tal deseducação não a encontrei no mundo pagão.

Essa área da sexualidade, profundamente ligada à vida humana, à família e ao tipo de civilização, vem a ser um filão aproveitado por grupos ideológicos políticos para tudo alterar. Fazem do casamento uma instituição banal, facilitam ao máximo o divórcio, colocando a liberdade individual e o prazer carnal acima da família. Repetindo que o casamento não é só para ter filhos (coisa que toda agente sabe), deixam no ar a ideia de apoio à licenciosidade e de menosprezo da natalidade. Em Roma e na Grécia era quase assim, e deu no que deu.

Agora vem a tentativa de estender o «casamento» a pares do mesmo sexo. Para isso inventam dois tipos de «casamento», o casamento heterossexual a que chamam tradicional e o homossexual ou moderno, para oferecerem aos cidadãos a possibilidade de escolha democrática! Ora desde que há raça humana, a palavra casamento significou sempre heterossexualidade. Falar de dois tipos de casamento seria como falar de «uvas» e «uvas de videira», como se houvesse dois tipos de uvas. Basta dizer «uvas» e dizer «casamento», pois são coisas únicas, não sendo precisos adjectivos.

A invocação de «igualdade democrática» para justificar os tais casamentos é outra manobra, confundindo «igualdade democrática» com «igualdade biológica». Sei que alguns militantes dessa pretensão até invocam o meu nome para justificar a sua posição. De facto, nas minhas cartas ensinei que «não há homem nem mulher, grego ou judeu, escravo ou homem livre». Referia-me, porém, à dignidade das pessoas diante de Deus, e não à igualdade biológica. Quando falei de casamento escrevi claramente que Deus criou a raça humana em dois tipos distintos e complementares, o homem e a mulher, macho e fêmea, e que «o corpo do homem é para a mulher, e o corpo da mulher é para o homem». Só faltava que por isso me chamassem discriminatório. A amizade entre pessoas é uma coisa, não conhece diferenças de sexo, o casamento é outra e exige a diferença. Haja igualdade, mas nem tanto.

Recentemente, a preparar o terreno para permitir a «adopção» de crianças por esses falsos casais, avançam com o termo «parentalidade» para designar a relação entre pais e filhos em vez de «paternidade». É outro sofisma. Fingem ignorar que «parentalidade» são relações afectivas vagas, não determinadas pelo sexo, ao passo que a «paternidade» (pai e mãe) é inseparável do sexo. Todos temos múltipla parentalidade por laços de sangue e de afinidade (tios, cunhados, primos, sobrinhos, compadres e comadres), mas temos uma só «paternidade». Ora para o equilíbrio de uma criança, não lhe bastam os laços da variada parentalidade, exige-se a paternidade. «A relação de pai não é uma relação vertical entre o pai e o filho. Para a criança, o pai real é o homem de uma mulher, o homem que fez dessa mulher a causa do seu desejo e, pelo seu corpo, se tornou o pai. A única garantia real da «função paternal» é um homem voltado para uma mulher» (Philipe Jullien).

Ao recorrer aqueles artifícios, o legislador transforma-se em corruptor oficial da linguagem, do raciocínio e do direito, invertendo o sentido das palavras e a lógica natural. Já fez isso com a lei do aborto, ao falar de «interrupção voluntária da gravidez» porque não há interrupção mas «fim» da gravidez, morte, e isso violenta os médicos, os serviços hospitalares e os profissionais de saúde, forçando-os a desrespeitar os compromissos deontológicos assumidos na sua formatura. É o triunfo da Sofística.

Este baralhar a realidade das coisas e da cultura faz lembrar o que escrevi na carta aos Romanos sobre os vícios de gregos e romanos que «inverteram a natureza e cometeram torpezas em seus corpos». Espero que vós, Transmontanos, habituados a chamar as coisas pelos seus nomes, não vos deixeis seduzir pessoalmente nem consintais se faça uma tal lei.

 

Romarias e Festas populares

5 –- Ao passar pelos vossos montes, encontrei cruzeiros encantadores, uns pela sua arte e outros pela sua candura. Ficaram-me os olhos neles. Fazem-me lembrar diariamente o tema da minha pregação de que Jesus Cristo é o centro de tudo, fonte de toda a piedade e da civilização. Parece-me, contudo, que alguns de vós não tomam a sério esses sinais. Em redor de alguns cruzeiros fazem-se festas religiosas com arraiais nocturnos e grupos tontos, a cantar baboseiras contrárias a esses monumentos de fé. Um cristianismo a brincar, sem paixão e sem dignidade, não tem graça nenhuma. Essa é uma doença de hoje, uma fé adocicada, burguesa, que escolhe da religião somente o que convém, como se faz no restaurante, uma fé dita progressista, sem esforço e sem sal. Acautelai-vos dessa moda. Só merece ser calcada e desprezada.

Uma babilónia religiosa análoga encontrei-a em Listra e em Éfeso, misturando religião com bruxedo, negócios desonestos sob o pretexto de bairrismo, de cura de doenças e busca da paz de espírito. Nuns casos agem por ignorância cultural e religiosa, por falta de médicos suficientes e de medicamentos acessíveis, o que leva as pessoas a recorrem a curandeiros e a remédios de substituição; mas noutros caos são os espertalhões da terra e os vindos de fora, que sabem o que andam a fazer e exploram os doentes e o povo.

 

Responsabilidade Política

6 – Na minha pregação deparei-me também várias vezes com autoridades militares, policiais, administrativas e judiciais. De um modo geral, eram boa gente: pessoas sensatas como o procônsul Sérgio Paulo de Chipre e o rei Agripa em Cesareia; serenas e sagazes como Galião da Acaia, delicadas como o centurião Júlio que me acompanhou durante a viagem de barco para o tribunal de Roma, e agradecidas como o governador de Malta. Mas também encontrei ardilosos como o governador Félix e carreiristas como Festo.

Trás-os-Montes foi sempre terra de militares, guardas, polícias e fiscais. Agora também há políticos. Nas minhas cartas antigas não convidei os cristãos a seguirem essa vocação porque, a princípio, eu pensava que «o mundo chegara ao fim» e ia acabar brevemente, e o importante era manter os fiéis acima do mundo. Mais tarde percebi que o tempo que «tinha chegado ao fim» era o tempo de espera do Messias mas não o tempo da história do mundo, e agora temos de colaborar com Jesus ressuscitado na organização da sociedade para que haja mundo novo. Nas cartas a Timóteo e a Tito, que escrevi no fim da minha vida, já falei disso um pouco. A vida das pessoas e das famílias depende muito dos bons políticos, sendo a política uma maneira de amar o próximo, como pensavam e agiram os grandes políticos cristãos que fundaram a «Comunidade Europeia» para ajudar a Europa a viver em paz

Torna-se urgente preparar pessoas, sobretudo os jovens, para essa missão. Espalhou-se hoje a ideia de que a política nada tem a ver com a religião, bastando que as coisas se façam dentro da legalidade. Ora quem faz as leis são os políticos e podem fazê-las a seu jeito. É urgente lembrar que, antes e acima da legalidade, há princípios éticos de ordem natural. Esses princípios correspondem nos Mandamentos da Lei de Deus, e os políticos, mesmo não sendo católicos, estão sujeitos a eles. O que é específico dos católicos são os mandamentos da Santa Igreja.

 

Mulheres e Sacerdócio

7 – Finalmente, queria agradecer a preciosa colaboração de muitas mulheres transmontanas, casadas e solteiras, e pedir-lhes que mantenham a sua dedicação. Deus colocou a mulher como a guardiã da vida, da fé e da beleza. Sem a mulher verdadeira, o mundo seria mais triste, teria menos gente a rezar, e seria mais feio. Por isso, trabalhei muito pela mudança do estatuto da mulher do mundo pagão para o mundo cristão. Também aqui nem tudo foram rosas, e um cristão nunca pode embarcar num feminismo barato. Lembrai-vos das manobras das senhoras distintas de Icónio, dos nervos de Sínteque e Evódia em Filipos, das mulheres palradeiras e mandonas de Éfeso, e das dores de cabeça de Timóteo. Embora agradecido, não escolhi mulheres para o sacerdócio porque não encontrei na Bíblia essa tradição.

8 – A última palavra é para os presbíteros, os meus melhores colaboradores. Tanto quanto pude, coloquei-os em todas as comunidades que eram urbanas. Lembro-lhes que têm de ser homens da alegria pascal, de oração e de estudo como recomendei a Timóteo, e que o seu trabalho específico que é «pregar a Palavra» antes e depois do baptismo (por via oral e escrita, pela rádio, televisão e Net, em reuniões de jovens e de noivos, de casais e de grupos apostólicos); «rezar e fazer rezar», em grupos e individualmente; e «organizar as comunidades» escolhendo leigos e preparando-os devidamente. Nas cartas a Timóteo e a Tito está desenhado o rosto de pastores, andarilhos que vão à procura de quem não vem. Jesus mandou «ir», e não somente limitar-se a esperar que venham procurá-los à residência e à igreja.

Não basta a pregação nos actos celebrativos de que fala a carta aos Hebreus nem se fiem na fé cristã herdada por tradição. Vejam o que aconteceu aos Gálatas: na minha ausência, depressa entraram em dúvidas de fé.

Começo a ter saudades de todos. Vou tentar escrever-vos de vez em quando e rezarei sempre por vós.

Envio cumprimentos aos crismados e outros jovens, aos casados, aos leigos empenhados, e às autoridades. A escrita e assinatura desta carta são do meu punho.

 

*Bispo de Vila Real

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