A primeira novidade entre o sacerdócio judaico e o sacerdócio cristão é que o primeiro é exclusivo de uma tribo, e o sacerdócio cristão é de todo o baptizado. Num livro recente sobre S. Paulo, encontrei a afirmação de que «Paulo não era sacerdote». Parei, reli a frase e percebi: não era sacerdote judeu porque esse sacerdócio era restrito aos membros da tribo de Levi, e Paulo era da tribo de Benjamim. No mesmo sentido, Jesus também nunca foi «sacerdote» e teve mesmo o cuidado de se distanciar dos sacerdotes judeus. Pertencia à tribo de Judá, que nunca foi tribo sacerdotal entre os hebreus.
2. A carta aos Hebreus é a última da lista das cartas paulinas. Não pode chamar-se uma carta «de Paulo» como as outras, pois nem tem o nome do autor nem a habitual saudação do início nem os destinatários nem despedida final. O seu autor revela-se pessoa instruída, bom conhecedor do Antigo Testamento, da língua grega e da doutrina de Paulo, mas com um estilo mais elegante e linguagem polida. Há nessa carta 168 termos que só aparecem aí, e outros duzentos com um uso particular. Por tudo isto, vários estudiosos atribuem essa carta a Apolo, judeu de Alexandria versado na cultura helénica, convertido ao cristianismo e que trabalhou com Paulo.
A carta é de alguém que conhece a doutrina de Paulo exposta na carta aos Romanos, aos Efésios, aos Gálatas e aos Colossenses, nas quais Jesus é apresentado como «redentor, libertador, vítima dos nossos pecados, preço da salvação, pão da unidade, cabeça do universo e cabeça dos ressuscitados», mas não fala de Jesus «sacerdote», ainda que em 1Tim4,14 se fale da «imposição das mãos», expressão ligada à «ordenação». A afirmação clara de Jesus como «Sumo sacerdote», «eterno», «intercessor junto do Pai», e da sua vida e morte como um «sacrifício», é feita pela primeira e única vez em todo o Novo Testamento na carta aos Hebreus.
Os destinatários dessa carta parecem ser os cristãos vindos do judaísmo ou mesmo sacerdotes judeus convertidos ao cristianismo, mergulhados numa crise espiritual agravada pela perspectiva das perseguições, e algo saudosos do esplendor ritual do culto judaico no templo de Jerusalém quando comparado com a modéstia do culto cristão mais recolhido e meditativo. A carta responde à necessidade de uma maior formação sobre a novidade do culto cristão e do novo sacerdócio.
Foi escrita antes da destruição do templo no ano 70 pelo imperador Tito, e Paulo morrera por volta do ano 67, também antes da destruição. Assemelha-se mais a um sermão ou conferência doutrinária do que a uma carta sobre o sacerdócio, e sobretudo uma carta para crianças de leite (5, 11-14)
3. A carta faz um paralelo pormenorizado do culto judaico praticado no deserto e no templo de Jerusalém com a obra de Cristo apresentada aqui como um culto novo. Podemos centrar tudo no «mistério pascal». Entre os judeus, o mistério pascal é o centro da vida de Israel, envolvendo a saída do Egipto e a formação do povo de Israel, a medicação de Moisés, a aliança do Sinai. Também a obra de Jesus tem o centro no «mistério pascal». Este mistério pascal de Jesus não foi uma reedição e um «prolongamento» do mistério pascal judaico, mas o autêntico mistério pascal. Foi Jesus quem «realizou» o mistério pascal da Bíblia, e o que se passou antes é mera «sombra». Por isso, os grandes temas hebraicos ligados à Páscoa sofrem uma mudança de 180 graus: um «novo Israel» ou «Povo novo» (Igreja de Cristo); uma «nova viagem», uma «nova tenda» e um «novo santuário» (o céu); um «novo Moisés», que conduz o povo para uma nova terra prometida; uma «nova Aliança» firmada no sangue de Cristo; um «novo Testamento», a partir da morte e ressurreição de Jesus; um «novo Cordeiro pascal», um «novo Sacrifício» (a oferta da vida pessoal de Jesus e dos cristãos) superior às ofertas de animais e um «Sacerdócio novo» nascido do Espírito Santo; um «dia novo» de descanso, que é o primeiro dia da semana e não o último, o sábado.
A exposição pode esquematizar-se assim: 1- Introdução: Jesus é o Filho eterno de Deus, superior aos anjos, e vem estabelecer um culto novo (1-2). 2 – Jesus é o Novo Sacerdote, fiel e compassivo, superior a Moisés (3-4), tem um sacerdócio diferente dos levitas, é semelhante ao do sacerdote Melquisedec, anterior e superior a Abraão (5- 7), é criador de uma nova Aliança e entrou num novo Santuário (8-9). 3 – Jesus, Novo Cordeiro e Novo Sacrifício (9 -10); 4- Exortação final: fidelidade ao novo culto até ao martírio, apelo a não vender este novo tesouro por uma prato de lentilhas, ou seja, não voltar ao culto antigo (11-13)
4. Em todo o culto, são nucleares a noção de «Sacerdócio» e de «Sacrifício». «Sacrificar» significa «sacrum facere», tornar algo sagrado. Não é propriamente «privar-se de» ou «destruição de algo», como se pensa frequentemente, vinculando sacrifício a destruição da vítima. Sacrificar é um acto positivo, um acto de amor, e, se o sofrimento ou destruição acontecerem, isso é secundário e não elemento constitutivo (A. Vanhoyce)
Na carta aos Hebreus, o «sacrifício» de Jesus não é um acto ao lado da vida, é a própria vida desde a incarnação, e ele é o «sacerdote» dessa vida feita «oferta» do Filho de Deus ao mundo como sinal do amor da Trindade. Jesus realiza a «oferta» da sua vida até ao fim em sinal de obediência ao plano do Pai e do seu amor pessoal ao mundo. Essa oferta pessoal e voluntária é o «sacrifício» no sentido nobre do termo – fazer uma coisa sagrada, fazer o que o Pai quer. Se essa oferta acabou por incluir a cruz, não é ela que dá valor à oferta, mas manifesta o grau do amor do ofertante, «mais forte que a morte», e, ao mesmo tempo, a cruz revela a incapacidade de os homens compreenderem a oferta de amor.
Ao fazer da sua vida um «sacrifício», Jesus é, simultaneamente, Sacerdote, Cordeiro, Altar e Templo! Após a Ascensão, continua a ser o único sacerdote e o único cordeiro. Acabaram os «sacrifícios de coisas e de animais», e os «sacerdotes funcionários». Sem nunca o dizer expressamente, Jesus concebeu o seu povo como um povo de «sacerdotes», um povo que não oferece coisas mas a vida pessoal como um «sacrifício e oblação» (Fil2,17). É isso que faz do cristianismo uma religião inseparável da vida. No novo culto, o que verdadeiramente interessa não são coisas nem animais, mas a vida pessoal, os corpos próprios (Rom 12,1) como um «culto espiritual» (Heb, 9,14,12,28). Os cristãos unem a criação à redenção de Jesus.
Os «presbíteros» e «bispos» aparecerão nas cartas a Timóteo como pastores, organizadores da comunidade. Só na carta aos hebreus serão vistos como ministros do culto, sem substituírem Jesus Cristo glorioso que permanece como o sacerdote único e eterno, a que os padres e bispos dão visibilidade sacramental.
Aquilo que hoje se chama sacerdócio geral ou «baptismal» já aparece em Paulo que manda aos baptizados oferecerem a sua «vida corporal» como «perfume de suave incenso». No final de um baptismo, diz-se: «desde hoje és membro de Cristo, «sacerdote, profeta e rei». O sacerdócio ministerial ou ordenado vem da última Ceia, onde Jesus disse aos Apóstolos: «fazei isto em memória de Mim». Portanto, todos os baptizados têm algum «sacerdócio», mas só os padres têm sacramento da Ordem. A noção de «sacerdócio baptismal» ou comum ainda não entrou na mentalidade geral. Os fiéis praticam o oferecimento das obras do dia, mas tomam-no como mero acto de piedade, sem qualquer ideia de sacerdócio.
5. Se o leitor conhece a pintura bizantina do «Pantocrator» (Jesus Cristo glorioso, de vestes pascais e grandes olhos, a encher a cúpula do presbitério das enormes igrejas e a projectar-se do alto sobre o espaço da nave e a assembleia ali reunida) tem a síntese do Cristo que se espelha na carta aos Hebreus: o Senhor da glória, vivo, atento ao seu Povo, por quem intercede junto do Pai, num abraço permanente de amor e protecção.
Abra a sua Bíblia, leia Hebr.8, 9,13, e deixe-se possuir pela grandeza sacerdotal de Jesus que eleva ao Pai as nossas vidas e faz descer sobre o mundo a sua bênção. Na sua vida diária o leitor sinta-se, à semana e ao Domingo, sacerdote com Jesus ressuscitado.