O barbeiro não espera pela resposta do cliente, pois ele bem sabe o que tem para fazer. É o habitual…cabelo quase rapado por uma questão de limpeza. Assim o corte havia de durar muito tempo. Pagar 5 tostões pelo serviço era muito dinheiro para quem ganhava, por dia, pouco mais a trabalhar no conde de Mateus.
Este barbeiro era culto e vaidoso como todos os barbeiros. E tinha razão para isso. Cantava bem e assobiava melhor. Vestia bata branca e o corte era ridículo. Mesmo assim sentia orgulho naquele pedaço de vestuário rodopiando-se por vezes para que o olhassem com atenção.
Na pequena saleta havia um espelho que duplicava as imagens. As crianças que entravam ali pela primeira vez berravam assustadas. Não era caso para menos quando navalhas, lancetas, lâminas e tesouras, apareciam grandes e a dobrar. Entretanto os berreiros acabavam rapidamente quando as mães com uns açoites no rabo remetiam os filhos ao silêncio.
Aos sábados à tarde os fregueses sobrelotavam a pequena sala… cá fora, sentados nas escadas e no chão, os clientes aguardando vez, distraíam-se, contando histórias, rebobinando misérias ou jogando às cartas.
Um cliente maltrapilho e malcheiroso entrou. O cabelo e as barbas tapam-lhe os olhos e o pescoço. Rebola o cigarro esfarelado na boca ao mesmo tempo que sopra procurando um som de assobio mas só lhe sai baba sabuja.
– Já decidiste como queres hoje o cabelo?- insiste o barbeiro fitando nos olhos aquela emporcalhada figura enquanto desdobra um toalhete branco que subtraíra de uma pequena gaveta. O costume – diz o homem enquanto tosse aos arrancões…
– O freguês é quem manda! – diz o barbeiro acenando a cabeça enquanto segura nos beiços um alfinete, enredomando os panos alvares. O barbeiro rodopia a velha cadeira que com a chiadeira desperta da lassidão um cão e as moscas que sobre ele poisam. Mãos à obra.
As tesouras fremem no ar sobrevoando a farta cabeleira do cliente. Antes de cada tesourada ouve-se bem alto o som achocalhado desse instrumento de trabalho a precisar há muito de substituição definitiva.
A cabeça do freguês estava possuída de parasitas. Nesta fase delicada e querendo afugentar tão asquerosa imagem, o barbeiro trauteia com energia o excerto de uma ópera bem conhecida de todos os clientes. Atira-lhes com uma melodia do Barbeiro de Sevilha. Enche os pulmões e entoa forte afugentando por momentos o mosquedo.
Normalmente o mestre barbeiro cantava com mais entusiasmo quando se aproximava a hora das refeições. Os animais tinham consciência disso porque também lhes calhava qualquer coisa e nesta récita eles colaboravam como podiam. Os dois pintassilgos na gaiola acompanhavam o cantor melodramático reforçando em trinados a melodia. Logo respondiam os canários repenicando alegremente. O cão ladrava numa espécie de canto fúnebre enquanto levantava o focinho magricelas e afilado. Também os cavalos estacionados acima da barbearia relinchavam animados pelo barulho. No decorrer do canto, o barbeiro entusiasmava-se. Então os braços livremente circulavam no ar. Aqui, os clientes assustados acompanhavam desconfiados o movimento dos membros receando que a tesoura lhes caísse em cima da cabeça.
Quando o mestre barbeiro cortava apenas a barba, o repertório era mais curto e usava o assobio exibindo normalmente um excerto de ária extraído de uma qualquer ópera… Rossini, Verdi, Bizet, eram os autores preferidos.
Por esta altura havia em Mateus duas bandas de música. Havia também alfaiates e sapateiros, músicos, teatro e comédias, cauteleiros e malabaristas…nas casas e nas ruas a música bailava de boca em boca e os instrumentos filarmónicos eram a revelação maior do orgulho dos seus habitantes.
Daquela barbearia ninguém saía de lá triste porque o mestre barbeiro para cada situação usava uma terapia adequada. A música era a sua arma secreta. O assobio, o refinamento dos sons.