Quarta-feira, 11 de Dezembro de 2024
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O Papa vai longe demais?

1 - Reservei para estas férias a leitura completa da última encíclica do Papa sobre questões sociais – «Caridade na Verdade». Esta carta faz parte de uma trilogia constituída pela encíclica «Deus é Amor», a primeira do seu pontificado, e pela encíclica «Salvos na Esperança», a segunda.

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A carta «Caridade na Verdade» é bastante longa e isso pode ser o primeiro obstáculo à sua leitura por parte de muitos que não conseguem ler um texto que vá além do breve artigo do jornal diário. A segunda dificuldade nasce da sua densidade doutrinária, como é próprio dos escritos de Bento XVI, um pastor que vai até às raízes teológicas das questões. Há um terceiro aspecto apontado como lacuna por alguns críticos – a ausência de invectivas directas ao sistema capitalista que é supostamente o responsável pela crise económica e financeira em que nos encontramos.

Tudo isso constituiria uma deficiência se o texto tivesse como objectivo primário conquistar o público. Mas os objectivos do magistério são algo diferentes: ensinar a fazer a leitura teológica dos acontecimentos sociais, estruturar o pensamento dos responsáveis, aprofundar a doutrina social da Igreja. Tudo isso está dentro daquilo que o Papa define como prioritário no seu magistério – responder à chaga cultural do nosso tempo, o relativismo e a ausência de princípios sólidos no pensamento e na acção, factores que estão na base do mau comportamento dos homens da alta finança internacional.

Portanto, esta carta do Papa não trata directamente da crise económica e financeira, não é um estudo técnico de ciência económica, nem apresenta propostas técnicas de solução da crise, pois esse tipo de trabalho não está dentro das tarefas do magistério da Igreja. O texto do Papa é um texto formativo sobre o desenvolvimento dos povos, e deixa aos políticos e cientistas a tarefa de fazerem esquemas de acção consequentes.

2 – A finalidade primeira da encíclica era celebrar os 40 anos da encíclica do Papa Paulo VI sobre o «Desenvolvimento dos povos» publicada em 1967 (a Populorum progressio) e que Bento XVI classifica como «a Rerum Novarum da época contemporânea». O aparecimento da crise financeira obrigou a alguns complementos. A encíclica Populorum Progressio foi a primeira encíclica publicada após o Concílio Vaticano II e nela é tratado pela primeira vez o tema do progresso e desenvolvimento dos povos. Paulo VI pôs-lhe a data do Domingo de Páscoa desse ano (28.3.1967), pelo que é chamada «encíclica da Ressurreição».

Vivia-se então a época da descolonização dos povos, e era frequente os países ricos irem em auxílio dos mais pobres saídos da descolonização, o que acabava por prolongar de outro modo a dependência desses povos. Paulo VI propôs-se ultrapassar esse esquema da mera ajuda económica e falou da necessidade de promover o «desenvolvimento» dos povos, fazê-los «crescer» cultural, técnica e economicamente. Avançou com a noção de «interdependência» dos povos, e, ultrapassando a solidariedade de classes no séc.XIX, passou a falar da solidariedade entre as nações. Solidariedade é mais que ajuda pontual.

Volvidos vinte anos sobre a carta de Paulo VI, o João Paulo II, em 1987, volta ao tema com a encíclica «A solicitude pelas realidades sociais» (Solicitudo rei socialis) sublinhando que, apesar dos efeitos positivos da encíclica de Paulo VI, o fosso entre ricos e pobres aumentou. Era o tempo do capitalismo liberal e do colectivismo marxista, a época dos dois blocos dominantes, mais preocupados com a venda de armas que com a verdadeira ajuda. Crescia o número de refugiados, aumentava o terrorismo, e ampliavam-se os problemas demográficos, tudo isso apoiado por estruturas oficiais sem valores que o Papa classifica de «estruturas de pecado», pois abafam as pessoas impedindo-as de agir livremente.

Passados vinte anos sobre o texto de João Paulo II, ou quarenta sobre o de Paulo VI, o Papa Ratzinger retoma o tema de Paulo VI sobre o «desenvolvimento dos povos» e dá-lhe um maior enquadramento teológico: o desenvolvimento e a solidariedade requerem uma atitude de «amor» dos políticos (n.8) Parece uma ousadia falar disto.

3 – A encíclica de Bento XVI tem 79 pontos, agrupados em VI capítulos: «a mensagem da Populorum progressio», «o desenvolvimento humano no nosso tempo», «a fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil», «desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, ambiente», «a colaboração da família humana», «o desenvolvimento e a técnica». Uma introdução faz a interligação da «Verdade» e da «Caridade» que atravessa todo o documento: «não há caridade sem verdade».

Muitas vezes, fala-se de caridade como sinónimo de sentimentos e gestos de simpatia. «Esse amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade: acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada, chegando a significar o oposto do que é realmente» (n.3). Esta reflexão sobre o «amor» vem da primeira encíclica do Papa e tem a maior aplicação no casamento. «A caridade sem verdade acaba confinada num âmbito restrito, fica excluída dos projectos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal» (n.4). Que a caridade se baseie na verdade é uma exigência da fé e da razão ( n.5). O primeiro caminho da caridade é justiça, dar aos outros aquilo a que têm direito Essa é «a lei dos mínimos», como escreveu Paulo VI. Os bens do mundo destinam-se a todos os povos e, se uns chegaram primeiro ao domínio técnico e à capacidade da sua exploração, isso não os torna senhores absolutos de tudo: têm de partilhar, de ajudar, e essa ajuda não é um favor sentimental, mas a verdade que exige se pratique essa partilha.

4 – Bastaria assimilar este princípio para que os responsáveis dos povos entendessem o que é o «bem comum e alterassem o seu comportamento político. Que fundamento tem, por exemplo, a constituição de «blocos económicos» (sejam do Norte ou do Leste, sejam do Ocidente ou do Oriente, sejam do Índico ou do Atlântico) que conseguem congregar os dinheiros de todo o mundo, se fecham em si mesmos e ficam tranquilos por deixarem cair «algumas migalhas da sua mesa»? Que «justiça» há na manutenção desses poderios económicos? Evidentemente que o princípio do destino universal dos bens do mundo não justifica o assalto à mão armada, nem exige um igualitarismo matemático, e prescreve mesmo a recompensa dos que mais trabalham para a prossecução do empreendimento científico, mas isso nunca pode ir ao ponto de concentrar tudo em alguns e esquecer o destino universal dos bens. A mudança interior dos políticos é que pode levá-los à construção de novos mecanismos práticos «Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político» (n.7).

Um jornalista de um grande semanário chegou a escrever que o Papa, ao fazer estas afirmações, até parece um militante de extrema esquerda! Na verdade, o Evangelho e a doutrina social da Igreja não são poesia mas dinamismos profundos e exigentes, e a ignorância dessa doutrina ou a sua assimilação deficiente é que tem afastado da Igreja muitas almas generosas.

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