Sexta-feira, 17 de Janeiro de 2025
No menu items!
Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

O povo que sabia cantar e rezar

A mocidade bailava como se com isso pudesse tocar as mãos da cachopa que há muito esperava por esse momento. Havia danças do “passo travado” que nas eiras, nos largos da aldeia ou mesmo em casa de um particular aconteciam.

Os temas eram ligados à fonte da aldeia, onde os encontros entre namorados eram frequentes e muito esperados. O povo cantava e rezava, impunha-se nas suas simplicidades e nas suas brejeirices… danças de roda, de maldizer da mulher para o homem, a lembrar o tempo dos trovadores e o homem teimando-se nos versos atacava quando podia com um velho refrão: “dá-me um beijo linda, dá-me um beijo dá, dá-me um beijo linda, vira-te para cá…”

Havia cantigas de roda para muitas situações na relação homem mulher, quando ambos laboravam nas escamisadas das terras do mesmo patrão, isto quando havia autorização para a mocidade se divertir e fazer uma brincadeira pela noite dentro, sem escandalizar os vizinhos… era um bailarico comandado pelo próprio canto… “fui ao campo às flores, numa cestinha no braço. Encontrei o meu amor, ai Jesus daqui não passo. Anda lá para diante ou retira-te do caminho, quem vai para amar Deus, não vai assim tão devagarinho…”

No largo da aldeia, o Ti Zé do Fundo, o Ti Jaquim da Venda, o Zé da Carriça, o Zé da Jumenta fumavam restos de cigarros esfarelados e sentados num banco de pedra saboreavam os restos do sol doente de inverno distraindo-se também com as brincadeiras dos cães e da canalha que faziam rolar arcos de pneus escangalhados…

No mês de maio havia a sacha do milho e esse trabalho era feito por ranchos de mulheres com leiras lado a lado, com enxadas rasas e bons dedos para arrancar a milhã, sem magoar o milho… durante o trabalho, os ranchos iam cantando várias cantigas, umas em desafio, outras dedicadas aos patrões, outras ainda apenas para alegrar e ajudar a passar o tempo, diminuindo o esforço da azáfama. 

De vez em quando o aguadeiro fazia passar o barril da pinga ou a cabaça, para dessedentar as trabalhadoras e permitir uma pausa para endireitar as costas. Por vezes o almoço e a merenda eram dados pelo dono e quem as trazia era a patroa na sua poceira branca à cabeça. À noite despegavam e voltavam para casa, cantando toadas soltas pelo caminho… “Lá vem a poceira, lá vem a patroa. Deus queira que ela traga uma merenda boa,” cantava uma delas ainda a saborear a farta posta de bacalhau que comeu e uma pinga de arregalar o olho, tão grande que dentro da saca levava quase metade para o homem tolhido pelas bebedeiras e os dois fedelhos que em casa esperavam pelo petisco… nos anos 50, no mês de janeiro, tocava o búzio e um rancho de gente partia para o Barreiro, perto de Guiães do Douro, para a apanha da azeitona e o grupo numeroso punha-se a caminho ainda as estrelas luziam no céu e os cães latiam dando sinal do barulho e das sombras. Esse trabalho de várias semanas era árduo sobretudo pelo frio e pela chuva, mas suportado por cantares alusivos à faina… “Adeus mulher, adeus casa, vou prá azeitona neste rancho azeitoneiro. Adeus! Adeus! Já toca o búzio, vou-me embora companheiro! Adeus, adeus!” Na despedida havia olhares perdidos, incertezas e miséria até que o trabalho da azeitona fosse pago…

Hoje a cultura popular quase não se pratica, porque este tempo está submetido às tecnologias mais avançadas e dentro de pouco é quase certo que iremos para qualquer lugar voando como pássaros, ou caindo das nuvens depois de nelas estarmos deitados…

 Preservar a cultura popular, é como estar presente com o passado, condição forte para melhor encararmos o futuro com confiança. Reavivar as nossas tradições é importante como preservar com orgulho a nossa identidade, identidade que os nossos avós com dificuldades tamanhas souberam engrandecer na sua a riqueza humana e espiritual só comparada ao Menino Jesus que viveu e morreu só para nós e por nós!
 

OUTROS ARTIGOS do mesmo autor

NOTÍCIAS QUE PODEM SER DO SEU INTERESSE

2025 – o ano de Trás-os-Montes

ARTIGOS DE OPINIÃO + LIDOS

Notícias Mais lidas

ÚLTIMAS NOTÍCIAS