Sentia-se o reverberar da maldade e do ódio pela raia por onde deambulavam foragidos, aventureiros e contrabandistas. A pobreza recrudescia e as suas raízes ancestrais revigoravam.
Zé do Posto, estulto e ladino, nunca soube que o seu nome não passava de uma corruptela da origem, pois o seu verdadeiro nome era José Exposto. Aventuravam os mais esclarecidos ser dos últimos abandonados na roda quando o século XIX declinava.
Sem família e amparo, depois de ter sido criado de lavrador tornou-se, ainda jovem, homem do mundo vagueando pelas terras do Monforte. Ao primeiro amuo ou falta de pão partia para o povoado seguinte.
No Natal de 1937, na dor do seu desamparo decidiu fazer o presépio, o seu presépio.
Escurecia quando se dirigiu à Igreja de São João Batista no termo da Castanheira. Nas imediações de Cimo de Vila recolheu um feixe de palha que carregou às costas sobre um cobertor de lã e a samarra coçada que parecia mais velha do que a sua origem.
Ronceiramente, empurrou a porta que gemeu sobre os gonzos na quietude glacial da noite e entrou na Igreja onde tremeluzia lugubremente a luz mortiça que alumiava o Santíssimo que pareceu estremecer quando o viu.
Zé do Posto persignou-se e, voltando-se para Jesus na cruz, referiu:
– Sabes o quanto me deves quando partir deste mundo. De seguida, retirou do bolso ensebado do colete uma onça de tabaco e uma mortalha. Languidamente fez um cigarro, cofiou a barba sem tempo e pôs-se a fumar.
Ante o olhar sóbrio e de estupefação do Santíssimo, Zé do Posto que conhecia o acervo do templo, colocou diante do altar-mor Nossa Senhora do Rosário, do seu lado direito São João Batista por nunciatura de São José para a função, e em semi-circulo acrescentou ao presépio Santo António com o menino ao colo e do outro lado Santa Teresinha.
Os dois santos, dos mais populares da Igreja, pareciam estupefactos pois era a primeira vez que alguém os convidou o presépio.
Pouco depois, Zé do Posto deu início à ceia de Natal. De um bolso surrento retirou algumas nozes e do outro um naco de pão de centeio, negro como a má sorte, figos secos e uma pequena cabacinha com cachaça.
Como nenhum dos convivas quis partilhar da ceia, Zé do Posto, sem lhes dar a palavra sentenciou:
– Nossa Senhora não bebe porque está a amamentar, o menino não bebe porque é criança, Santo António não bebe porque tem o menino ao colo e Santa Teresinha e São João Batista não gostam de cachaça. De seguida bebeu um gole e rejubilou com a sua teologia de desaconchego.
Estendeu o feixe de palha junto do presépio e deitou-se sobre ele com a samarra e o cobertor por cima do corpo.
Antes de adormecer voltou-se para Jesus na cruz e invetivou-o: – Aqui para nós: peço-vos meu Jesus não abandoneis os pobres que mais não têm do que o chão dos caminhos, os doentes, os famintos de comida e comiseração, os que sofrem sem reabilitação. Quando dizeis, vinde a mim os pobres em espírito, eis-me diante de vós.
Deitado nestas palhas do presépio feito pela imaginação de um tolo, pela primeira vez, no abandono do mundo, senti-me filho de Deus.