Com apenas 18 anos, Fernando Carvalho Giesteira trabalhava numa pensão e num bar, em Lisboa. Nascido na Borralha, Montalegre, a família mudou-se cedo para Vreia de Jales, no concelho de Vila Pouca de Aguiar, onde cresceu.
Tinha ido trabalhar para Lisboa dois anos antes. Crê-se que estaria a sair do trabalho quando se apercebeu da revolução e se juntou aos populares em frente à sede da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), que passou a designar-se DGS (Direção-Geral de Segurança). De dentro do edifício a resposta aos pedidos de rendição foram rajadas de tiros sobe a multidão. Fernando Giesteira foi um dos atingidos e o mais jovem dos quatro mortos, as últimas vítimas da DGS. Nunca se conheceu a identidade dos seus assassinos, nem o caso foi investigado, caindo no esquecimento, a não ser para a família e quem o conhecia.
Em Lisboa, Fernando apercebeu-se de que o país vivia num regime fechado e começou a ter alguma consciência política. José Teixeira era amigo de infância de Fernando e esteve com ele em Lisboa. Conta que viam “de vez em quando manifestações de estudantes”, reprimidas pela guarda. “Aquilo chamava-nos a atenção e falávamos muito disso”. José conta à VTM que no 25 de Abril tinha voltado a Vreia de Jales, senão “provavelmente teria ido com ele e seria uma das vítimas também”. Estava presente quando deram a notícia ao pai da morte de Fernando. “Ele foi assassinado”, diz ainda com revolta, considerando-o um mártir da revolução. “Acho que ele foi muito maltratado, porque foi uma vítima da PIDE e do antigo regime e nunca houve ninguém que fizesse qualquer coisa, porque no fundo foi um herói”, afirma. Além de uma placa no local dos acontecimentos com o seu nome – que esteve muito tempo até errado – poucas referências houve a estas mortes. “Devia ser homenageado, acho que vão dar o nome dele a uma rua, mas acho que merecia muito mais que isso”, afirma, lamentando que tenha sido “esquecido”.
Conta que Fernando era um bom aluno, uma excelente pessoa e era ambicioso.
“Confessou-me várias vezes que o sonho dele era ser empresário, ter um restaurante”. Mas os sonhos acabaram na manhã em que o jovem esperava que se abrissem outras portas.
A irmã, Ana Giesteira, relatou num livro, que conta a história dos seis mortos no dia da revolução, que a 25 de Abril não saiu de casa porque estava a recuperar do parto recente. Morava também em Lisboa, mas não com o irmão e só no dia 26 foi informada da morte. A notícia chegou primeiro a Vreia de Jales do que à casa de Ana, em Lisboa. Recebeu uma mensagem dos pais que dizia: “Se quiseres vir ao funeral do teu irmão, anda para casa. Mataram o teu irmão”.
O funeral foi dias depois e “a mãe dele queria mandar-se para a campa com o filho”, recorda José.
António Lage
No mesmo dia em que o corpo de Fernando foi transportado para o cemitério de Vreia de Jales, seguia um pouco mais adiante o corpo de António Lage, natural de Loivos, Chaves, outra das vítimas mortais do 25 de Abril. Mais tarde, cerca das 21 horas, já depois de se entregar, foi baleado. Trabalhava na PIDE/DGS na Rua António Maria Cardoso, mas não era agente. A folha de serviço descrevia-o como “servente assalariado”, um moço de recados e porteiro. No entanto, a sede da polícia política foi rodeada por populares que exigiam castigo para os membros da PIDE. Mas os agentes e os responsáveis terão fugido. No edifício ficou apenas António Lage e um ou outro funcionário. Cerca das 21 horas, rendeu-se, saiu de braços no ar, mas acabou baleado nas costas.
A irmã, Emília Lage, conta o pouco que soube das circunstâncias da morte de António. “As forças armadas enfrentaram a delegação da PIDE e berraram lá para dentro “rendam-se ou bombardeamos”. Os grandes deviam estar todos avisados, não estavam lá. Ele e outros saíram. Ele pôs os braços no ar, porque no jornal aparecia de braços no ar. Foi revistado, não tinha armamento. Mas o povo começou todo a gritar: matai-o que é da PIDE. Ele tentou fugir, correr para o quarto, que era ali perto, e no cruzamento dispararam-lhe uma metralhadora nas costas”, conta à VTM, sem esconder a emoção e revivendo a custo o episódio.
A senhoria ainda o terá avisado na manhã da revolução para que não fosse trabalhar, devido à agitação, mas António não quis deixar de se apresentar ao serviço.
À aldeia de Loivos ainda não tinha chegado a notícia de que tinha havido um golpe militar em Lisboa. A 26 de abril de 1974, um colega de trabalho de um dos irmãos leu no jornal o que se tinha passado e reconheceu o nome de António Lage. Voltaram para Loivos e informaram a família. Emília não se esquece do momento em que recebeu a notícia da morte do irmão mais novo. “Eu estava aqui neste pátio”, diz apontando para o espaço à entrada da casa onde ainda mora. “Era aí meio-dia. Quando me disseram até caí para trás, para mim ainda foi ontem”, conta. “O 25 de Abril foi um mar de rosas para muita gente, mas para mim só foram lágrimas”.
O corpo chegou a Loivos no dia 28 e tinha a aldeia em peso à espera. “Fazia cinco anos que tinha vindo da Guiné e os meus pais fizeram um festejo, com as poucas posses que tinham”, por ele ter sobrevivido à guerra colonial, num dos cenários mais violentos. A banda, a que pertenceu, recebeu-o e toda a aldeia celebrou ter regressado. Naquele domingo de abril, o mesmo mar de gente o esperava, mas desta vez “a chorar”, recorda emocionada.
“Os meus pais nem dinheiro tinham para pagar à funerária, tiveram de pedir emprestado”, conta, dizendo que António muitas vezes mandava dinheiro para a família. “Chovia a cântaros no funeral, parece que só a natureza se compadeceu da família”, recorda Helena Rodrigues, uma das sobrinhas, que diz que o tio “estava no sítio errado à hora errada”, mas não se conforma nem com a morte nem com a falta de explicações. “Há muitas coisas que não foram esclarecidas. Se era tudo tão mau porque é que o presidente e os outros foram para o Brasil e não lhes aconteceu nada? Os que não tinham culpa nenhuma morrem assim na rua. Isso é que custa a entender”, diz com alguma revolta.
A família nem sabia que ele trabalhava na DGS, mas António estava a estudar para arranjar outro emprego. “A vontade dele era emigrar, mas o destino foi outro”. Depois de vir da Guiné, entrou para a Guarda a cavalo, mas a repressão a que assistia levou-o a procurar outro serviço. “Ele não gostava de fazer mal. Numa vez foram chamados para uma desordem, não sei se num campo de futebol, e queriam que os cavalos avançassem sobre as pessoas, mas ele não avançou. Depois foi reprendido e não quis continuar na guarda”, conta a irmã. Também a sobrinha se lembra de uma conversa entre o tio e o seu pai, em que dizia não estar satisfeito no trabalho. “O meu tio disse que não estava muito contente, porque vinha de uma guerra, só Deus sabe o que lá passou, sobreviveu e viu tanta gente morta à frente… E ele não gostou das ordens do comandante na GNR e disse que logo que pudesse saía para outro lado”.
O mês de abril é sempre pesado para a família. “O que me revolta é dizerem sempre que no golpe de Estado correu tudo bem e não houve sangue. Mataram várias pessoas. E depois esqueceram-se”, diz Emília.
A memória e as biografias foram praticamente esquecidas, a não ser pelos mais próximos.
Estas são duas das histórias que integram o livro “Esquecidos de Abril” e o filme que estreou este mês “Revolução (Sem) Sangue”.