Aos fregueses com calos nos pés, o sapateiro fazia uma radiografia visual e com o molde fazia a mágica. Com as devidas saliências no calçado à medida da dimensão dos calos, o artista raramente se enganava.
O sapateiro António Matos (Meco) tinha um monte de filhos e, para alimentar tamanho regimento, concebeu um dia uma artimanha refinada de argúcia. Ele conseguiu ludibriar os seus superiores quando trabalhava no Regimento Infantaria 13.
Em finais dos anos 50, havia no quartel farta criação de porcos. Com a lassidão do bom trato, os animais facilmente se deixavam apanhar.
Um dia, o sapateiro com grande mestria decidiu bater em cheio na cabeça do bicho, usando um martelo preparado para o efeito: infalível. Bastou uma primeira pancada e o animal morria com um grunhido seco.
Após o abominável sucesso, dava a notícia ao comandante que por sua vez lhe pedia para enterrar o pobre animal, pensando o graduado que o porco sofria de uma qualquer doença contagiosa.
António Matos pede autorização para enterrar o porco em Mateus, sabendo que a ordem lhe seria autorizada. É claro que o sapateiro não chegava a Mateus: fazia um desvio para sua casa e porque os dias eram pequenos e metidos no silêncio da noite, tudo ficava resolvido pacatamente sem que a vizinhança de nada se apercebesse. Durante semanas, os dias eram de barriga cheia. Confessava-se, dilacerado que depois do porco morto a consciência lhe pesava, desabafando doído na alma: “tinha que ser, a fartura não era muita…”
Naqueles dias, quem passasse pelas casas vizinhas ouvia no chorriscar da sertã o estralejar de torresmos e outras guloseimas…
Nesse tempo, os de Vale de Nogueiras vinham buscar o calçado a Mateus e levavam a obra feita nas mãos para não sujarem as solas ornamentadas de fazer inveja a muitos profissionais das Belas Artes. Assim, os clientes, cientes desse pequeno tesouro, só para a missa calçavam o primor da obra feita.
A sua imaginação era prodigiosa. Às exigências extravagantes de algumas encomendas, ele dava resposta pronta. Chegava a comprar os sapatos já feitos na cidade, transformando-os depois em sua casa, satisfazendo os caprichos de alguns clientes. Estes, quando iam levantar a obra, ficavam plasmados, sobretudo quando nas solas do calçado se estampava a marca indelével do artista.
Para ele o dia só terminava, quando a noite caía no silêncio, e quando em casa os filhos dormiam. Mas só o fazia depois de exibir uma bela melodia no saxofone, instrumento que nas suas mãos ele tocava como a linguagem da alma e dos afetos