2 – De facto, a fé é um salto da vontade convidada a viver em um novo patamar, muito acima da utilidade imediata do dia-a-dia, e é um salto da inteligência que leva a pessoa a conhecer outros mundos. E tudo o que se oponha a esse duplo salto constitui obstáculo à fé: o comodismo, a preguiça mental, o preconceito e os medos.
Há, em primeiro lugar, o medo dos que se habituaram a viver fora de quaisquer regras e, naturalmente, temem aderir a uma doutrina que lhes pareça contrariar essa vida de libertinagem (S. Agostinho falava desse ruído de paixões interiores que gritavam dentro dele quando se viam ameaçadas pela conversão do hospedeiro), e há o medo dos que temem a disciplina da prática religiosa cristã. Estes dois medos são clássicos e relacionam-se com a moleza da vontade.
Há, depois, o preconceito ou modo de raciocinar baseado apenas na lógica humana ou nos métodos técnicos e experimentais das ciências, da economia, da medicina que parecem mais seguros e trazerem proveitos. A essa mentalidade se refere o Papa no n. 12 da sua carta apostólica: «Nos nossos dias, mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogações que provêm de uma diversa mentalidade que hoje, de forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas».
3 – Há outros que temem o salto da fé por motivos que até parecem honestos. Refiro-me a alguns dos nossos contemporâneos empenhados na transformação do mundo. Sentem que o mundo é o campo da sua atividade, e temem que a atitude religiosa os afaste dos seus compromissos temporais ao concentrar-se nas questões da eternidade e impedindo o recurso aos métodos que julgam mais eficazes nas mudanças sociais – a luta e a violência.
Este medo é cultural, e merece atenção. Na história da cultura, essa orientação do conhecimento humano para o mundo iniciou-se no Renascimento e veio a consumar-se no cientismo e nas revoluções do séc. XIX e XX, revestindo por vezes conotação marxista. Nesses três séculos, deixou de se ver o mundo a partir de Deus (o teocentrismo) e passou-se a estudá-lo em si mesmo e nos seus resultados imediatos (o geocentrismo). «Até ao Renascimento, ensina Romano Guardini, o mundo chamava-se «Criação»; a partir do Renascimento passou a chamar-se «Natureza», isto é, a «mãe» donde tudo nasce, esquecendo tudo o resto. Iniciaram-se aí os tempos modernos».
Esse geocentrismo não era, a princípio, uma negação da fé cristã, era somente uma mudança de método e de perspetiva, uma legítima procura do «positivo» e do «útil» que levou à construção de máquinas para dominar o universo, extrair dele benefícios materiais, ir à lua e sonhar com novos voos domésticos. Com o tempo, porém, esse método transformou-se em hábito patológico, o homem ficou prisioneiro dessa gaiola, o mundo tornou-se pequeno e esqueceu tudo o que não seja mensurável. Para tais inteligências, formatadas pela máquina, ouvir falar de Deus e do céu, da alma e da eternidade, de tudo o que vá além da história, é falar do antigamente e do medieval.
Com o advento da informática (computador, internet), o mundo reduziu-se ainda mais: real é somente aquilo que se capta em tais meios. É o reino do «presentismo» das autoestradas da informação. Nasceu aí uma nova antropologia, a do «homo videns» ou homem da imagem, o mundo virtual dos cibernautas, os conectados.
Tais pessoas assemelham-se ao meu computador que ignora palavras como eclesial, catequético e outras relativas à fé e à Igreja. A essa mentalidade se refere o Papa no n. 12 da sua carta apostólica
4-Esse clima de «cientismo», do tecnicismo invadiu muitos estudantes de ciências naturais, de biologia e de informática e vastos sectores da população, formatando-os com a aparência de um mundo infindável, uma quase eternidade.
É esse o substrato cultural de muitos dos fiéis a quem anunciamos o Evangelho. Mesmo que não saibam formalizar o seu pensamento, é assim que raciocinam. Disso nos adverte a «Gaudium et Spes» ao lembrar que a tais pessoas não se pode anunciar o Evangelho de qualquer modo, repetindo princípios e ritos por eles culturalmente «desvalorizados». Passa por aqui a novidade da nova evangelização.
A fé cristã harmoniza muito bem o verdadeiro uso da razão, o amor ao mundo e o sentido de eternidade (não podendo dizer-se outro tanto das religiões orientais nem sequer do islamismo). A modernidade, no que ela tem de melhor (os métodos de conhecimento e as suas conquistas), mantém-se plenamente válida. A fé dá-lhe um novo enquadramento, acabando por gerar cidadãos mais felizes e de mais larga eficiência no mundo.