O texto já está divulgadíssimo em múltiplas edições, não sendo necessário transcrevê-lo aqui. Importante é captar a alma da saudação do Papa, prolongada na Oração de consagração feita diante do Santíssimo Sacramento.
O discurso dirigiu-se conjuntamente aos Padres e aos Religiosos, sem especificar o que é próprio de um Padre e do que é de um Religioso, que não são a mesma coisa.
A primeira nota é que o Sacerdócio católico só se compreende bem na estrutura da fé da Igreja e só se vive dignamente num clima de piedade. O sacerdócio pode ser tema de estudos bíblicos, comparando o Antigo e Novo Testamento (sacerdócio levítico e sacerdócio cristão), de reflexão teológica, de análise histórica e sociológica, e de enquadramento jurídico, ou seja, os aspectos codificados em leis. Nenhuma dessas perspectivas, contudo, dispensa o que nele há de «mística interior», de «encanto» e de «intimidade» com Jesus Cristo.
O discurso do Papa começa por fazer a ligação do sacerdócio ao mistério da Incarnação do Verbo, na qual tomou parte essencial a Virgem Maria, sempre invocada pelo Papa no seu discurso e na Consagração final a Maria, como a Mulher da escuta e da oferta, e mantém-se nesse tom de alegria espiritual, de piedade, de intimidade com Jesus Cristo, e nunca de polémica ou apologética, nem sequer de deduções teológicas, sabendo-se que o Papa tem sobre o Sacerdócio grandes e profundos trabalhos de teologia. Bento XVI ilustra o seu discurso com citações do Cura de Ars, textos afectivos, directos e humildes de um santo cura da aldeia.
2 – Dois apelos balizam o seu discurso: a fidelidade a Cristo e à Igreja, e a lealdade à vocação.
O Padre é um ministro e amigo de Cristo, muito acima do mero funcionário que não sabe nem sente o que faz o seu Senhor. A «intimidade» com Ele é a fonte da «fidelidade no tempo que é o nome do amor, amor coerente, verdadeiro e profundo».
O Padre é também homem da Igreja, foi ordenado no interior de uma Diocese concreta, podendo transitar dela para outra, mas não pode viver à margem da diocese, por sua conta e risco. Este relacionamento fraterno do Padre foi muito sublinhado pelo Santo Padre: «momentos de oração e de estudo em comum, união de forças no trabalho pastoral, o calor da fraternidade e aconselhamento recíproco, até o discernimento das situações em conjunto». Nada disto se consegue sem oração e sem direcção espiritual.
O Padre sente diariamente esta dupla dimensão e o Papa apela à «lealdade» para com essas duas faces da vocação. Fora delas, o padre começa a viver descentrado, em redor de outro apoio e, com o tempo, cansa-se de ser padre. Em nossos dias há um conjunto de factores que distraem deste centro e causam o «esmorecimento dos ideais sacerdotais», tais como a sedução secular, viver como um leigo, a tendência de «não ser exagerado», «não ser fanático mas tolerante», e canalizar o zelo pastoral para as tarefas sociais que trazem nome. (Tais tarefas cabem na vida de um padre, mas não podem ser o centro, devendo entregar a sua execução a outros).
3 – No discurso do Papa aparece uma referência ao mistério do Além, «do qual vivem alheados muitos dos nossos contemporâneos como se ele não existisse».
A chamada «dimensão escatológica da vida cristã» é específica dos homens e mulheres consagrados que vivem totalmente desprendidos do mundo pelos três votos de castidade, de pobreza e de obediência, e o Santo Padre fez esta referência certamente por causa dos Religiosos ali presentes. Mas ela deve ocupar um lugar de destaque na vida do Padre, sem o qual o seu ministério afrouxa como seta de arco brando. Ele tem de falar da morte aos seus paroquianos, do sofrimento inevitável, do sentido último da Providência e do sentido da vida, e até da vertente escatológica da Eucaristia proclamada em todas as celebrações, não como uma fatalidade e verdade a evitar, mas como expressão da Ressurreição, meta e fonte de vida e de libertação!
Na parte final do discurso, o Papa dirigiu-se aos seminaristas pedindo que examinem bem «as intenções e motivações» da sua presença no Seminário e do desejo de se Ordenarem, e convida-os a pensarem na «responsabilidade» perante a Igreja e o mundo. Aconselhou claramente a oração pessoal e a adoração ao Santíssimo, o espírito de intimidade com Jesus Cristo. Por estranho que pareça, também estes jovens têm os seus «demónios» vestidos de luz: o individualismo veiculado pela sociedade actual, o desejo de serem líderes locais, de brilharem pela inteligência e capacidade artística, pela integração na modernidade. Esses valores podem ser a cabeleira de Absalão que os irá enforcar na corrida do protagonismo.
Finalmente os três grupos (Padres, Religiosos, Diáconos, Leigos) devem sentir que nenhum deles exprime sozinho o mistério da Igreja nem o mistério de Jesus. Cada um deles possui um carisma e exerce um ministério. Mas só de mãos dadas, podem ser Igreja, não somente por delicadeza, mas por exigência da verdade. Dessa consciência nasce a estima recíproca, e a fortaleza de cada um. Para todos é necessário um sentido de libertação radical, e o Papa repete a palavra «livres» cinco vezes. O padre não precisa da compaixão beata de ninguém que o compense da sua solidão, mas de gente sadia que o ajude a levar por diante o trabalho da evangelização. Como estamos em tempo de futebol internacional, que a mística da equipa ajude a perceber isto.