Durante a campanha eleitoral falou-se unicamente do Primeiro-ministro, mas, como dizia um velho pároco, o que aflige é saber quem vai fazer as leis: as eleições chamam-se «legislativas» porque, rigorosamente, o objectivo maior é a formação do Parlamento ou escolha do conjunto de legisladores oficiais. A pessoa indicada para Primeiro-ministro até pode trocar-se por outra do mesmo partido ou de outro, se a que for inicialmente indicada não for capaz de formar governo, ao passo que os deputados são sempre aqueles que foram eleitos. Essa engenharia da máquina de poder obedece a regras já estipuladas e o seu comentário pertence aos comentadores políticos.
2 – Na reflexão pós-eleitoral que aqui apresento, gostaria de chamar a atenção para alguns aspectos da campanha eleitoral. Pode parecer uma perda de tempo, mas não é: é um exercício educativo. Qualquer adulto deve habituar-se a fazer este exercício de examinar o seu comportamento em actos de maior responsabilidade pessoal e colectiva como são os actos públicos, não para se culpabilizar inutilmente, mas para se tornar mais consciente dos passos dados. É que, geralmente, só depois de feitas, as coisas revelam o seu verdadeiro rosto escondido, como diz o povo acerca da construção de qualquer casa: «depois de inaugurada é que a gente devia começar a construção».
3 – Os estudiosos da vida política (e estou a pensar concretamente em Maurice Duverger, um socialista francês conhecido de muitos dos leitores) ensinam que o voto político não obedece a razões de pura lógica racional. Na decisão do eleitor entram factores afectivos muito variados, tais como tradições familiares, simpatia pessoal dos candidatos, ideologias, grupo social a que se pertence, sintonia ou antipatia com eleitores vizinhos, traumas inconscientes, fantasias, utopias e vinganças de vária ordem. Nesse sentido, o voto político é um pobre acto humano, um gesto nascido de um estado de meia embriaguez, um acto vindo de um coração poluído, de uma vontade que tem pouco de pessoal. É o fruto de um pequeno dilúvio de paixões, mas é o que há no coração das multidões.
De igual modo, os discursos da campanha eleitoral não são lições de rigor científico e estão inquinados de fraquezas e maldades, alusões de mau gosto, falsidades e distorções conhecidas como tais, teimosias, ondas de publicidade, contradições, insultos e mentiras. Por essa razão, há pessoas que por temperamento e formação são incapazes de entrar numa campanha política, e, inversamente, há outras que se sentem aí como peixe na água. Em democracia, a vitória eleitoral não significa sempre a vitória da verdade, mas é a vitória do estado de espírito do povo naquele momento, e os políticos têm de possuir a capacidade de, passada a campanha, ir educando o povo para o realismo. Essa é a razão por que o povo inventou outro adágio para caracterizar o clima das campanhas eleitorais: «nunca se mente tanto como durante a guerra, depois de uma caçada e durante uma campanha eleitoral». Tem de ser assim? – Certamente que não, mas de facto é isso que acontece e os políticos vão dizendo que «em política reina outra moral, vale tudo». A democracia é o regime possível para as paixões humanas, podendo melhorar ou piorar conforme a capacidade dos cidadãos. Rigorosamente, não há duas democracias iguais.
É por isso que, ao cidadão que se queira adulto, é indispensável rever sempre os comportamentos, a fim de não lhes dar mais valor do que aquele que eles merecem e de saber conduzir-se no futuro.
4 – Na última campanha eleitoral para as legislativas e, antes dela, na campanha para as eleições europeias, houve um tema sistematicamente afastado dos debates políticos: os valores familiares, o casamento, a natalidade, a eutanásia, a vida humana. Chamam-lhes «questões fracturantes», isto é, valores desrespeitados por todos os partidos, ainda que nuns mais que noutros, e, para evitar essa bomba interna nas famílias partidárias, faz-se silêncio à volta desses valores e fala-se unicamente de questões económicas e financeiras. A questão é saber se aquelas questões omissas são ou não são decisivas para a sociedade, se elas passam ao lado da economia ou se nela interferem. Acontece aqui o mesmo que se verifica numa viagem de automóvel: pensa-se em tudo (os documentos oficiais, o combustível, o estado do motor, a limpeza e apresentação exterior do veículo) mas não se pensa na distribuição do peso, na segurança das jantes das rodas nem no limpa brisas, e a viagem pode converter-se em tragédia por deficiência desses factores julgados menores.
Essa é, de facto, a chaga da vida política actual, reflexo de uma sociedade materializada: reduzir tudo à economia e finanças, esquecendo que a economia entregue a si mesma degenera, como se viu na crise que ainda estamos a viver. Alguns nada aprenderam com essa desgraça. Um cristão deve trazer para aqui a advertência do Evangelho: «nem só de pão vive o homem, procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça (verdade, justiça, moderação) e tudo o mais vos será dado por acréscimo». Isto vale para os indivíduos e para as nações.
Deixando a construção da vida da família e a estabilidade afectiva dos jovens e adultos unicamente entregues ao brio de cada um, como se o Estado nada tivesse a ver com isso, cairemos na parábola das jantes e do limpa brisas: verificar-se-á que os salários não chegam para cobrir tantas liberdades de jovens e adultos, que as leis não cobrem a variedade de situações, que a inovação abranda, que os jovens não aprendem, que as reformas descem, que o trabalho não rende, que as despesas aumentam, que faltam glóbulos vermelhos no corpo da sociedade.
A temática da família, que exige uma capacidade de análise diferente da análise matemática e financeira, é sistematicamente arrumada pelos políticos de mentalidade economicista, incapazes de entender as ciências humanas. Algumas forças políticas usam e abusam das palavras «conservador», «antiquado», «coisas do passado», e utilizam-nas como pedras de arremesso que humilham quem se atreva a defender a família natural. Aqueles vocábulos pertencem ao mundo da cultura e da história e, transpostos para a luta política, perdem exactidão e baralham tudo. A família natural não é uma coisa do passado, pelo contrário, é um ideal a conquistar, um tipo de família fruto da vitória sobre paixões de todo género. Os slogans utilizados contra ela deixam no ar a ideia de que as paixões estão acima da família natural, o individual acima do institucional, o prazer acima da missão. Chama-se a isso a «cronolatria» (a idolatria do momento, adoração do tempo que passa) ou, em termos psicológicos, a pura adolescência, aquela fase por que todos passamos empenhados em rejeitar «tudo o que estava para trás», nada conservar. O antigo bispo do Porto dizia que, economicamente, só o mendigo nada conserva por viver sempre de mão estendida, e podemos acrescentar que o ignorante nada conserva por nada saber, o céptico por nada ter como certo, e o amoral por viver sem regras. Ao ouvir ataques sistemáticos à família natural, fixemos quem faz tais discursos políticos, a que família pertence, que ideologias professa, que tipo de vida faz.
A vida política vai continuar e vamos ver como as coisas evoluem.