Como é do conhecimento generalizado, Fernando Pessoa foi um dos mais importantes poetas da língua portuguesa (para muitos o mais marcante) e figura central do Modernismo português. Poeta lírico e claramente nacionalista, a sua poesia foi voltada para os temas tradicionais do Portugal da época (muitas vezes perfeitamente actuais), caracterizando-se pelo seu lirismo profundamente saudosista.
Se este saudosismo não fosse per si suficiente para o paralelismo com alguns dos actuais protagonistas políticos locais, o facto de Fernando Pessoa ter sido na sua produção literária vários poetas em simultâneo, os famosos heterónimos (poetas com personalidades próprias, muitas vezes conflituantes) parece ser perfeitamente enquadrável na realidade actual. Na verdade, não estamos perante simples pseudónimos, os heterónimos de Pessoa assumem-se como indivíduos verdadeiramente diferentes, cada qual com seu mundo próprio.
Através de Alberto Caeiro, Pessoa privilegia o contacto com a natureza, extraindo dela valores ingénuos e desinteressados, através dos os quais alimenta a sua alma. Alberto Caeiro, através da contemplação, reduz tudo à objectividade, sem mediação do pensamento. Através do óculo de Alberto Caeiro vemos na nossa realidade política local actual as sucessivas acusações de mentira, sempre pelos mesmos protagonistas veiculadas, num tão curto espaço de tempo, sem qualquer pudor em utilizar esta tão esdrúxula palavra e, acima de tudo, não respeitando todos aqueles que antes de si percorreram caminho.
Ricardo Reis, por seu turno, caracterizava-se por ser monárquico, tendo-se exilado no Brasil por não concordar com a Proclamação da República Portuguesa. Através deste heterónimo de Pessoa, conseguimos ver com clareza aqueles, felizmente poucos, que persistem em não conseguir ver nas sucessivas eleições autárquicas realizadas desde 1974 (incluindo naturalmente as realizadas em 2013 e 2017), um sintoma claro do progressivo amadurecimento da nossa democracia, onde ninguém ganha eleições por qualquer tipo de direito consuetudinário.
Mas é, na verdade, através do progressismo e inconformismo característicos de Álvaro de Campos que conseguimos encontrar uma razão para tudo isto: o trabalho desenvolvido pela actual equipa autárquica, por ousar transformar o concelho em que habitamos, choca as actuais oposições, tal qual o trabalho de Fernando Pessoa e da geração de Orpheu (nome da revista inspirado no mítico músico grego que, para salvar a sua mulher, Eurídice de Hades, teria de a trazer de volta ao mundo dos vivos sem nunca olhar para trás), chocou o Portugal de 1915.
Para este mal, para a maledicência dele decorrente e para o que aí vem no próximo ano, resta-nos, convocar hoje a sageza lapidar de Fernando Pessoa: “Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem – esta é a verdadeira filosofia.”