De facto, a Bíblia havia tido uma vasta difusão entre os católicos logo a seguir ao concílio de Trento, entre 1560 e 1660, a chamada época de ouro. Mas por causa dos remoques dos racionalistas e dos protestantes ao modo como os católicos liam a Bíblia, a Igreja reagiu negativamente, e a Bíblia quase desapareceu entre os católicos, a ponto de se dizer que «a Bíblia era um livro protestante». Nas últimas décadas a Bíblia voltou a ser difundida entre os católicos, quer pelas campanhas dos párocos junto das famílias dos jovens na profissão de fé, quer pelo trabalho dos Capuchinhos e de outras Ordens religiosas, quer pelas edições artísticas dos livreiros.
2 – Todavia, muitos que possuem a Bíblia não a leem. Influi nisso a falta de hábitos de leitura, mas também a ausência de verdadeira iniciação. De um modo geral, as pessoas, habituadas a ler obras de um só tema, sentem-se perdidas perante aquela floresta e perguntam se a Bíblia não possui um tema que lhe dê unidade, uma espécie de herói central, como acontece em qualquer obra literária. Esse herói central existe e chama-se o amor de Deus pelo mundo, amor consumado em Jesus Cristo, mas essa perceção só é possível numa terceira ou quarta leitura.
Verifica-se aqui o mesmo que acontece com os «Lusíadas»: cada um dos cantos narra um episódio da viagem do caminho marítimo para a Índia e, só no fim, é que se percebe que o autor, enquanto descreve a viagem de Vasco da Gama, conta habilidosamente a História de Portugal. O conhecimento de cada episódio é interessante e válido, mas só quando é integrado no conjunto atinge a sua grandeza. De modo análogo, a Bíblia fala, diretamente, da vida dos antigos hebreus e, por meio deles, fala do amor de Deus ao mundo. Jesus apresenta-se na Bíblia como a última etapa desse longo diálogo de Deus com o mundo iniciado na Criação. Jesus é a descida do «noivo» até junto da noiva para fazer a «aliança» nova e eterna. No Antigo Testamento, a noiva ou esposa é o antigo povo de Israel, chamado pelos profetas a uma aliança com Deus (Iavé), e cuja recusa é chamada «prostituição»; no Novo Testamento, esse antigo amor de Iavé assume corpo em Jesus de Nazaré, e a noiva engloba o antigo povo de Israel e toda a humanidade!
É este dinamismo central que dá unidade e inteligibilidade a toda a Bíblia que, por isso, podemos chamar um poema religioso nupcial.
3 – A constituição Dei Verbum diz isto logo no início. Depois de afirmar que «aprouve a Deus revelar-se a si mesmo e dar a conhecer a sua vontade aos homens como a amigos, e que conversa com eles para os convidar e admitir a participarem na sua comunhão», conclui dizendo que «essa Revelação se consuma em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a Revelação» (n.2). Em outros lugares afirma que «as palavras de Deus» se explicam pela «Palavra». Este brilhante jogo de linguagem diz que os episódios bíblicos ou as «palavras de Deus» se tornam claras pela referência à «Palavra» ou Verbo do Pai. Por isso, a Bíblia contém as «palavras de Deus» e, sobretudo, o Verbo ou Palavra.
Jesus é, pois, a chave de leitura de todo o processo revelador, um pouco como a flor que revela a planta, devendo aqui dizer-se com toda a verdade que «pelos frutos se conhece a árvore»: enquanto temos diante dos olhos somente o tronco da árvore não conseguimos conhecer essa árvore, ou seja, enquanto temos diante de nós somente o Antigo Testamento (e, por maioria de razão, a natureza) não podemos conhecer bem o plano de Deus e o seu mistério. Sem a luz do Verbo (Jesus Cristo), todo o Antigo Testamento será ambíguo, envolto em sombras, como confessou Paulo aos coríntios (2Cor3,15), ele que era judeu de nascimento e versado na leitura do Antigo Testamento. É por esse motivo que os rabinos judeus se perdem no labirinto da sua interpretação, e é também por essa razão que a Bíblia deve ler-se do fim para o princípio, de Jesus para Moisés, do Novo para o Antigo Testamento, da flor para a raiz, como quem leva a chave para entrar em casa.
É uma ajuda excelente a edição chamada «Bíblia de Jerusalém» que, nas margens do texto do Antigo Testamento, tem sinais que reenviam para textos do Novo Testamento e, nas margens deste, remete para os textos do Antigo Testamento onde o tema vem esboçado como sol antes de nascer. É esta leitura diacrónica que permite ir da sombra para a luz e, depois de encontrar a luz, voltar ao Antigo Testamento para reler as imagens e os símbolos em toda a sua grandeza. Citemos dois exemplos: Jesus é apresentado por João Baptista como o «Cordeiro de Deus». Para bem captarmos essa afirmação, leiamos os textos do Êxodo sobre o Cordeiro da Páscoa e, depois perceberemos o alcance da Ceia de Jesus e do Calvário. Outro exemplo: contrapor a leitura do Pentecostes nos Atos dos Apóstolos com o drama da torre de Babel (Gén.11): um texto ilumina o outro. É assim que procede a Igreja na liturgia colocando sempre o Evangelho como último texto a ser proclamado, que a assembleia aclama dizendo: «Glória a Vós, Senhor» ou «Glória a Vós, ó Cristo».
Não me parece, pois, boa pedagogia espremer as palavras do texto do Antigo Testamento tentando extrair delas o vinho que somente a «cepa» do Novo Testamento é capaz de fornecer. “Quem não tem a chave de interpretação do conjunto, a vinda do Filho de Deus como homem, não pode obter a exegese do conjunto” (Simian-Yofre)
4 – É exímio nesta orientação conciliar da exegese o Papa Bento XVI que, nos dois volumes já escritos sobre a pessoa de Jesus, se socorre muitas vezes do Antigo Testamento confrontando-o com o Novo e com a Tradição, pois Jesus é verdadeiramente a única fonte da Revelação, e a Bíblia e a Tradição são meios para encontrar essa fonte de água viva. Fez o mesmo nas meditações sobre os vários salmos do Antigo Testamento apresentadas na praça de S. Pedro durante o verão de 2011, concluindo a reflexão desses salmos antiquíssimos relacionando-os com Jesus Cristo! Não se trata de «puxar a brasa à sua sardinha», isto é, forçando a cristianização do texto hebraico, mas de ser fiel ao princípio hermenêutico da Dei Verbum: tudo na Bíblia converge para Jesus Cristo: Cristo é o novo Adão, é o novo Abel, é o novo Isac, é o novo Moisés que intercede pelo Povo, é o novo Job sobre quem recai o sofrimento do mundo, é o sábio maior que Salomão, é o novo Jonas ressuscitado. Como diz a Dei Verbum, “os livros todos do Antigo Testamento, recebidos íntegros na pregação evangélica, obtêm e manifestam seu sentido completo no Novo Testamento que, por sua vez, o iluminam e explicam” (n.16). É esse o sentido da afirmação de S Jerónimo, tradutor do texto hebraico da Bíblia para latim, ao dizer que «ignorar as Escrituras é ignorar Jesus Cristo».
Jesus é o herói, a chave de leitura, o rio que irriga toda as páginas da Bíblia