Na sua Visita pastoral ao nosso país de 11 a 14 de Maio, o Papa fez, em momentos diferentes, uma série de afirmações a respeito de Portugal ao longo da história que vale a pena reunir aqui neste dia.
Na saudação aos jornalistas durante o voo para Lisboa, referiu-se à «profunda humanidade deste povo» e, na sessão de acolhimento no aeroporto de Lisboa, citou a fundação de Portugal no séc. XII cuja diplomacia «buscou na arbitragem do Papa o reconhecimento de Nação independente», de harmonia com a lei da Idade Média que atribuía ao Papa uma autoridade semelhante ao papel que hoje desempenha a ONU no reconhecimento dos novos países. Nesse discurso citou ainda o título honorífico de «fidelíssimo» que outro Papa, Pio II, quis usar «para honrar Portugal na pessoa do seu Rei», conforme a bula «Dum tuum» de 25 de Janeiro de 1460.
Na homilia da Missa no Terreiro do Paço, em Lisboa, aludiu claramente à gesta dos Descobrimentos e à cidade de Lisboa «donde partiram em grande número gerações e gerações de cristãos – bispos, sacerdotes, consagrados e leigos, homens e mulheres, jovens e menos jovens –, obedecendo ao apelo do Senhor e armados simplesmente com esta certeza que lhes deixou de estar sempre presente. «Glorioso é o lugar conquistado por Portugal entre as nações pelo serviço prestado à dilatação da fé nas cinco partes do mundo, há igrejas locais que tiveram origem na missionação portuguesa». Nesse mesmo discurso citou os mártires de Lisboa – os santos Veríssimo, Máxima e Júlia, e outros santos como S. Vicente, padroeiro da cidade, Santo António e S. João de Brito dali naturais, e S. Nuno canonizado pelo próprio Papa há cerca de um ano. Já na saudação de chegada ao aeroporto se havia referido a Portugal que «levou a fé católica a todas as partes do mundo» e citara o Brasil, a África e a Ásia e, na homilia de Fátima, apelidou Portugal de «nação gloriosa».
No Centro Cultural de Belém citou Camões (Lusíadas, II,45) que classificou de «poeta nacional».
Mas não ficou no passado. Falou do Portugal de hoje, e falou abertamente do centenário da implantação da República na saudação aos jornalistas em pleno voo para Lisboa, e a ele voltaria no início do discurso no aeroporto ao falar da «antiga e amada Nação que comemora no corrente ano um século da proclamação da República», e, no final da mesma saudação, falou da «viragem republicana operada há cem anos em Portugal.
2 – Portanto, o centenário da República esteve presente no espírito do Papa desde o início da viagem, e teve sobre ele um olhar crítico, apontando aspectos positivos e outros negativos.
Bento XVI enquadra a implantação da República no Iluminismo que vem do século XVIII e citou Pombal. Diz que a implantação da República sublinhou a distinção entre Igreja e Estado, e que abriu um espaço novo de liberdade para a Igreja, que as Concordatas de 1940 e de 2004 formalizariam em contextos culturais e perspectivas eclesiais bem demarcadas por rápida mudança», e que «os sofrimentos causados pelas mutações foram enfrentados geralmente com coragem».
Emite depois um juízo sobre o secularismo: «Não sendo o secularismo uma coisa totalmente nova», «hoje ele radicalizou-se e mostra-se com todos os sinais do espírito europeu. E este me parece ser um desafio e uma grande possibilidade. Nesses séculos de dialéctica entre Iluminismo, secularismo e fé, nunca faltaram pessoas que quiseram estabelecer pontes e criar um diálogo, ainda que, infelizmente, a tendência dominante foi a de contraposição e da exclusão de um e de outro. Hoje vemos que esta dialéctica é uma oportunidade para encontrar uma síntese e um diálogo profundo e de vanguarda, e explica esse diálogo e síntese.
«Na situação multicultural em que estamos, vê-se que uma cultura europeia que fosse unicamente racionalista não possuiria a dimensão religiosa transcendente, e não seria capaz de entrar em diálogo com as grandes culturas da humanidade que possuem, todas elas, esta dimensão religiosa transcendente, que é uma dimensão do ser humano. Portanto, pensar que existiria uma razão pura, anti-histórica, existente em si mesma e que esta seria «a» razão pura, é um erro; descobrimos cada vez mais que a razão toca somente uma parte do homem, exprime uma certa situação histórica, mas não é a razão como tal. A razão como tal está aberta à transcendência e só no encontro entre a realidade transcendente, a fé e a razão é que o homem se encontra a si mesmo».
Assim, conclui o Papa, «penso que a tarefa e a missão da Europa nesta situação é justamente encontrar este diálogo entre a razão e a fé, integrar a fé e a racionalidade moderna numa única visão antropológica que completa o ser humano e, desse modo, torna comunicáveis as culturas humanas». Bento XVI conclui positivamente: «a presença do secularismo é algo normal», a contraposição entre secularismo e a cultura da fé é que é anómala e deve ser superada. Essa é uma missão da Europa e uma necessidade humana nesta nossa história».
3 – Esta citação foi longa mas constitui um elemento chave da mensagem do Papa que pode completar-se com a reflexão apresentada no Centro Cultural de Belém.
É um texto típico de Bento XVI, da área chamada academicamente teologia fundamental onde se encontram a filosofia e a teologia, a razão e a revelação. A cultura vigente na Europa de hoje proclama a ruptura entre elas: onde houver racionalidade não pode haver fé, e onde houver fé não haverá racionalidade.
Já várias vezes aqui falei dessa mentalidade que, insensivelmente, invade muita gente. O Ocidente faz opção pela razão (incluindo a tecnologia) contra a fé, e o Oriente, mormente os muçulmanos, fazem opção pela fé contra a razão. Deste modo, o Ocidente torna-se descrente e o Oriente torna-se fanático. O Papa insiste no diálogo da razão e da fé, e esse apelo vem dos seus tempos de professor, aparece em todas as suas obras mais significativa, incluindo o diálogo público com alguns agnósticos célebres e o discurso feito em Ratisbona que muitos desvirtuaram.
Na verdade, o método racional científico e experimental, utilizado no laboratório e em todas as ciências positivas, só permite conhecer coisas materiais, coisas do mundo, seculares, e esse «secularismo é algo normal», diz o Papa. Diferente disso é transformar esse método em único, como fez o Iluminismo do séc. XVIII em França e na Alemanha, desprezando tudo que ultrapassa a razão experimental e a lógica positiva, a área do sobrenatural. Simplesmente, diz o Papa, esse raciocínio é só parte do poder da razão, é «uma» razão mas não é «a» razão humana. O desejo, a sede e a fome da inteligência humana vão para além do saber experimental, dito científico, como atesta a história de todas as culturas históricas que se abriram sempre ao transcendente.
Esta posição do Papa é hoje essencial no diálogo europeu da Cultura e da acção política. No Centro Cultural de Belém Bento XVI lembrou que «uma cultura que se feche na exaltação do presente e menospreze o passado, conduz um povo à perda da sua memória, tornando-se uma cultura de morte. É isso que acontece com o elogio repetido ao «progressismo» e com a defesa fundamentalista do passado, conforme as conveniências dos grupos. Só gente inculta defende o disparate de confundir tempo com verdade.
As pessoas dedicadas à cultura deviam compreender este apelo do Papa, mas há compromissos de grupos e de clubes que bloqueiam a liberdade interior. O povo não saberá dizer isto em linguagem académica, mas tem a sabedoria natural que o leva a entender perfeitamente a advertência de Bento XVI.