Sexta-feira, 21 de Março de 2025
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Raízes

Ao ouvir no dia cinco de Outubro o discurso do senhor Presidente da República sobre a escola e a corrupção em Portugal, lembrei-me das raízes, uma reflexão que venho a fazer há tempos. Raízes é uma palavra robusta: lembra os pés das árvores agarradas à terra e batidas pelos ventos em dias de tempestade, lembra […]

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Ao ouvir no dia cinco de Outubro o discurso do senhor Presidente da República sobre a escola e a corrupção em Portugal, lembrei-me das raízes, uma reflexão que venho a fazer há tempos.

Raízes é uma palavra robusta: lembra os pés das árvores agarradas à terra e batidas pelos ventos em dias de tempestade, lembra a seiva que sobe e desce pelo tronco, e lembra os valores fundamentais das tradições familiares, a estrutura ética das pessoas que garante a confiança que nelas depositamos, a solidez mental do raciocínio adulto. A palavra tem conotação semântica com rochedo, com estrutura óssea, com glóbulos vermelhos do sangue.

É a palavra que o Papa Bento XVI usou na viagem pastoral à Áustria quando falou aos políticos, aos diplomatas, aos jovens, aos fiéis em geral, e também era essa a palavra que o seu antecessor utilizava quando se dirigia aos responsáveis pela Europa. O Presidente da República não foi tão longe, mas, em linguagem civil e ambiente de festa política, não anda longe do tema das raízes e da sua falta.

A Europa tem raízes? Nós temos raízes? Ambos os Pontífices se queixaram de que a Europa perdeu ou tende a esquecer as suas raízes. Que raízes são essas?

O Helenismo, a Romanidade e o Cristianismo, dizem os estudiosos da cultura, a tradição clássica, a tradição jurídica romana, a mística cristã, ou, de outro modo, a disciplina e o voo da razão humana (aquela razão que o Papa recomendou aos muçulmanos no seu discurso em Ratisbona), a sensibilidade do direito romano, e a mística da Bíblia que proclama ao mesmo tempo a absoluta transcendência de Deus e a proximidade de Deus em relação ao mundo. Há quem acrescente àquelas três raízes na formação da Europa o vigor dos povos bárbaros e o sentido de nação, alguma cultura veiculada pelos muçulmanos após o séc. VIII, e o espírito científico nascido depois do Renascimento que é, afinal, a educação de uma tarefa da razão. Mas esses factores não são iguais. Nota Rémi Brague, professor de filosofia árabe da Universidade de Paris, que «é o cristianismo que permite aos outros elementos subsistir». Ele é o veículo e o cimento dos outros, pelo que, logicamente, a sua extinção traria a anarquia de todas elas: a Grécia conheceu a «polis» e o «cidadão», mas não conheceu a pessoa humana; Roma conheceu o «direito» (o ius), mas não de todos; o Islão e as religiões locais conheceram o «sagrado», mas não a «ternura e universalidade da trindade divina».

No séc. XVIII nasceu em França a trilogia da «liberdade, igualdade e fraternidade». São palavras nascidas em solo cristão mas privadas das suas raízes: a força da verdade, a dignidade da pessoa, a presença Pai. Por isso, a mística nascida dessa trilogia francesa é a «tolerância», uma palavra fria, tecida de distância e até de sobranceria: os outros, diferentes de nós, são tolerados.

Parece que é esta mística, sem valores religiosos, que desejam implantar na Europa e nas suas escolas: uma liberdade acima da preocupação pela verdade, uma igualdade acima da dignidade da pessoa, uma fraternidade sem Deus, meramente horizontal. No ano distante de 1989, perante os acontecimentos então verificados na Europa oriental, o cardeal Ratzinger proferiu em Rieti (Itália) uma conferência que repetiu em 1990 na cidade de Roma e, nesse mesmo, adaptada ao meio, em Toledo. Em todas elas abordou os fundamentos do Estado citando S. Agostinho, um homem do séc.V: «Um Estado que funde o Direito apenas sobre a opinião da maioria, prescindindo de outras fontes, tende a reduzir-se interiormente ao nível de uma associação de malfeitores». E acrescentou: «É o que começa a manifestar-se onde quer que se revista de uma aparência de direito a eliminação sistemática de homens inocentes – como os ainda não nascidos – visto que tem do seu lado a capa do interesse da maioria».

Parece violento dizer isto e, todavia, é uma afirmação elementar. Já se diz por aí em voz alta que «a ética é a lei», isto é, a vontade da maioria é a fonte da ética, não havendo raízes superiores à opinião da maioria. Quem se distanciar dessa vontade e das suas estruturas terá de se haver com recurso a tribunais, numa dobadoira caríssima e interminável. A destruição das de raízes na sociedade, se não mesmo o seu corte, processa-se lentamente. Quando nas escolas se ensina que a filosofia é a arte de interrogar e duvidar sempre porque não há verdade e tudo é relativo; que a mãe natureza é a única fonte da fraternidade; que a medicina e sua tecnologia ainda não viram o cérebro de uma criança até às dez semanas e por isso se pode eliminar nos hospitais oficiais, mas às catorze semanas já é crime; quando o Estado exclui das matérias escolares do ensino básico e secundário os valores morais e religiosos das famílias ou os dificulta ao máximo; quando os pais cuidam da educação artística e literária dos filhos mas não da sua formação moral e religiosa, – acautelemo-nos porque andamos a construir unicamente com há raízes do mundo e do poder. O Presidente falou da corrupção geral, algo protegida pelo emaranhado de leis donde nunca mais se sai, e os jornais falam de crimes sofisticados, no aparecimento repentino de plantas destinadas à droga mesmo entre nós.

Será então que os cidadãos perderam a sensibilidade moral? – Perderam as raízes que ultrapassam a lei dos homens e por isso só temem o policiamento. Mas se tudo fica pelas leis dos homens, então bastará ladear a lei do policiamento e do fisco, os únicos diabos da civilização. Vencidos esses, seria o céu.

Estão a começar o ano escolar e as actividades nas paróquias. A Igreja vem a reunir catequistas, a preparar comissões de acção social, escolha e nomeação de professores de Moral. Que raízes estão a preparar as famílias, as escolas e o Estado?

 

* Bispo de Vila Real

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