Ao falar de Seminário e de vocações, pensa-se habitualmente em tendências e carismas inatos de determinadas pessoas, pessoas certas no lugar certo, pessoas que se dizem realizadas e felizes. Este modo de falar deixa a impressão que isto de «ter vocação» é uma espécie de destino já inscrito no código genético de cada um, como se houvesse pessoas já fadadas para determinada função e outras dela afastadas.
Tal mentalidade perturba gravemente a pastoral das vocações, levando as pessoas a identificar a vocação com o prazer espontâneo e instantâneo de ser padre. Ora a vocação é o resultado de um longo combate entre as capacidades naturais, a liberdade pessoal e a força da graça. Há pessoas possuidoras de determinadas capacidades intelectuais, artísticas, afectivas, morais e religiosas. Todavia, essas capacidades são pluridireccionais, genéricas, dão para vários serviços como a madeira de qualidade que tanto dá para móveis de sala como para um altar, para mobília de quarto ou para esculpir a imagem de um santo. Não há um fado nem um destino pré-estabelecido. O encaixe perfeito da pessoa no lugar certo só se vê mais tarde, depois de muito esforço para ajustar a pessoa à tarefa e de anos de fidelidade. Antes disso, a pessoa tem de conhecer–se a si mesma e decidir-se a utilizar as capacidades no sacerdócio, o que implica o exercício da liberdade e da generosidade. Por isso é que no seu diálogo com as pessoas, Jesus dizia «se queres vir comigo»… Paulo de Tarso nunca pensou ter vocação para discípulo de Jesus, e o mesmo se pode dizer de Levi ou Mateus. Em ambos os casos houve um convite, uma tomada de consciência e uma longa conversão.
2 – O Seminário é o espaço e o ambiente propício para o jovem se estudar a si mesmo, gradualmente, durante anos, até descobrir as suas capacidades e animar-se a colocá-las ao serviço directo do Evangelho. Por vezes, nos primeiros anos parece nada se aproveitar e, com os anos, o jovem acorda intelectual e afectivamente; noutros casos, os começos são brilhantes e, depois, tudo se desfaz perante o embate do mundo e das suas seduções, acabando o jovem por abandonar o caminho do sacerdócio onde poderia realizar-se e ser perfeitamente feliz. Há ainda casos onde o jovem avançou com dignidade até ao sacerdócio que recebeu com entusiasmo, verdade e justiça, mas depois, pelo descuido diário, foi-se descuidando, perdeu o encanto inicial e acabou por se afastar como incapaz de viver a opção que fizera correctamente.
Deste modo, falar de carismas e de pessoas predestinadas é uma linguagem ambígua, pois o que realmente conta é o trabalho de cada um e dos seus educadores, a generosidade e a humildade interior. Pode dizer-se que quanto mais sério é o jovem mais receio tem de não ser capaz e mais se esquiva, tornando-se necessário estimulá-lo. A história de uma vocação sacerdotal é a história de um longo combate pessoal, de subidas e descidas, de dúvidas e de coragem, de lealdade com Deus.
3 – Donde se conclui que os pais, os catequistas e os professores devem estar atentos aos pequenos sinais dos jovens, e ir-lhes propondo gradualmente essa hipótese. Dado o combate que se vai travar no interior desse jovem, é preciso encomendar o caso a Deus, mormente na Eucaristia e na oração a Nossa Senhora. Ninguém merece ser padre, nem merece ter um filho padre. Ser padre é sempre um dom de Deus, no sentido de ser precisa a graça para ver as capacidades naturais e decidir colocá-las ao serviço da Igreja.
Ao examinar o jovem, há alguns sinais claramente negativos: se é muito enfermiço ou com graves carências físicas, se é intelectualmente incapaz, se é instável de humor, se tem tendência para a mentira ou o roubo ou de humor instável, se é demasiado calculista e pouco generoso, se não tem capacidade de se entusiasmar ou de admirar. Tais tendências são defeitos de carácter e não aconselham a entrada nem a permanência no Seminário. Os adolescentes criados fora do convívio com os pais ou com carências afectivas, emigrados de terra em terra, com parentes alcoólicos ou dementes, devem ser seriamente examinados, pois com a idade essas fragilidades naturais vêm ao de cima.
Por sua vez, os pais e educadores devem examinar-se mesmo em silêncio interior sobre a razão pela qual desejam que o jovem seja padre: para lhes garantir um emprego? para subir e ter prestígio social? para encontrar uma saída para um filho doente ou que falhou nos estudos?
E devem examinar também por que é que não gostariam que o filho fosse padre: por vergonha social, uma vez que os padres vêm tradicionalmente dos meios rurais e fazem uma vida modesta? Por sentirem que a sua inteligência é mal empregue no sacerdócio e podem ser brilhantes médicos, advogados e engenheiros? Por medo de o ver infeliz, criticado e sem casamento? Pelo desnível económico do padre comparado com situações de estudos semelhantes?
Estes testes interiores são muito úteis porque ajudam os pais a ver o amor que têm à Igreja e o clima que o jovem respira à sua volta.
4 – Num documento de 2008 («Orientações para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio»), lê-se : «O ministério sacerdotal requer dotes e virtudes morais e intelectuais relacionadas com o equilíbrio humano e psíquico, particularmente o equilíbrio afectivo, de modo que o indivíduo possa fazer uma adequada doação de si mesmo ao serviço de Deus e dos fiéis». E cita algumas dessas qualidades: «a estabilidade clara da identidade masculina, a capacidade de relacionamento amadurecido com outras pessoas ou grupos, um sólido sentido de pertença como fundamento da futura comunhão com os colegas de presbitério e de uma responsável colaboração com o bispo, a capacidade de se entusiasmar com grandes ideias, a coragem de tomar decisões e de ser fiel a elas, o conhecimento de si mesmo diante de Deus que gera a auto estima e a confiança, a capacidade de se corrigir, o gosto pela beleza e a arte de a reconhecer, a capacidade de integrar a sua sexualidade no todo da pessoa. Tais objectivos só podem ser plasmados pelo cruzamento da graça de Deus com o esforço do candidato, num caminho gradual, longo e nem sempre fácil».
Para examinar o grau dessas tendências pode, às vezes, recorrer-se a exames psicológicos, mas esse não é o caminho normal, pois tais qualidades são uma condição, mas a grande decisão tem de vir do próprio candidato, conclui o documento.
Faz bem aos pais, aos jovens e aos próprios padres lerem estes excertos do texto neste Ano Sacerdotal: a uns permite ver o caminho a andar e a outros examinar se já chegaram à meta devida.