Tenho reflectido muito no próximo referendo sobre o aborto e em tudo o que ele e a campanha em curso revelam acerca dos mecanismos da decisão pessoal: o cruzamento da inteligência e dos afectos, o compromisso da fé e o compromisso partidário, a fidelidade dos católicos à voz dos pastores da Igreja e a previsão ainda que hipotética da gravidez indesejada de uma filha ou de uma neta. Um voto nunca é ditado somente pela lógica fria da inteligência, ensina M.Duverger, mas nele se cruzam factores afectivos, amizades partidárias, clima e tradição de família. Esse é o drama da política, onde se torna indispensável purificar sempre o coração das paixões que nele se acoitam e que perturbam a inteligência e a vontade.
Muita gente centraliza o referendo unicamente na defesa da mulher que não deve ser julgada se abortar. Já isso é uma opção. Mas então a pergunta devia ser outra: concorda que se altere a legislação actual sobre a mulher que aborta? Isso deixaria sempre ao Estado a obrigação de não facilitar o aborto, confiando aos penalistas uma redacção diferente da lei actual, como acontece na Itália. Tal como está, a pergunta do referendo em Portugal revela que o Estado não tem qualquer interesse pelos cidadãos nascituros, o único caso em que o Estado se alheia das ofensas corporais contra a vida humana, reduzindo tudo à saúde da mãe, quase a uma questão estética. Uma mãe, qualquer mãe, pode pedir, sem qualquer impedimento e sem outra justificação, o aborto de seu filho, mesmo saudável, desde que se faça num hospital oficial e até às dez semanas de vida. Trata-se mesmo de estabelecer um período de liberalização geral da morte dos nascituros. É por isso que algumas comparações que foram usadas para sublinhar este desconcerto (pena de morte e terrorismo do aborto legalizado) têm cabimento, sabido como é que uma comparação não cobre todo o espaço do discurso mas se destina exactamente a sublinhar o brilho ou o aspecto negativo de uma atitude. Os abortistas gritam que não será precisa qualquer vigilância, que não haverá perigo, que a mulher saberá escolher os casos, que é preciso ter confiança na mulher, que ela não abusará, que será lúcida, que saberá recorrer ao aborto somente em casos excepcionais. Tanta fé! Onde existe a mulher com tal fortaleza, com tal lucidez, com tal heroísmo? Existem certamente mulheres assim, mas essas são as que nunca se puseram a hipótese do aborto. De qualquer modo, as leis educam ou deseducam as pessoas, e a lei do aborto livre educaria para o menosprezo da vida.
Estão, pois, em confronto dois mundos culturais: do lado da mulher, um certo feminismo, a defesa da sua liberdade levada até à hipótese da morte dos filhos e a cooperação do Estado; do outro lado, a defesa da vida da criança no seio materno, mesmo com risco de incómodos da mãe, que podem não ser os actuais mas serão sempre alguns.
Como disse acima, neste baloiço doloroso da percepção dos valores, intervêm subtilmente alguns factores alheios ao raciocínio, tais como o «feminismo» libertário, a simpatia partidária, a vaidade do grupo, com recurso aos slogans estafados do «conservadorismo» e do «modernismo» Sente-se claramente que esses ventos são névoa indigna de um diálogo intelectual e drama social.
Sentindo em todo este debate a importância da noção de «pessoa», empenham–se os grupos na definição da mesma, reclamando uns a necessidade do «sistema nervoso» completo, e outros a «relação pessoal» como elementos essenciais à pessoa. É uma polémica sem fim e desnecessária. O senso comum coincidente com a realidade científica actual ensinam que o ser humano nasce de um ovo e que esse ovo, depois de formado após a fecundação, fecha-se e não recebe mais nada do exterior, desenvolvendo o que lhe foi dado de início. Acontece algo semelhante no final da vida, quando o brilho da pessoa se apaga gradualmente, sem que ninguém se lembre de negar que ali se encontra a pessoa brilhante de anos anteriores. Quanto à falta de «relações» humanas do nascituro, ele estabelece com a mãe uma relação tão profunda que impõe mudanças nos mecanismos biológicos e nos afectos, mantendo o seu estatuto, podendo ser de sexo diferente da mãe e até de outra raça. Não há hoje hipótese séria de negar a individualidade do nascituro desde o início.
Torna-se, pois, necessário educar a subjectividade das pessoas, dos eleitores e da mãe, dar-lhe condições concretas afectivas e sociais para ela levar por diante a vida que traz consigo, e não a deixar sujeita aos ventos que sobre ela farão soprar homens e paixões, namorados e maridos surpreendidos com nova paternidade.
A luta do aborto trava-se portanto entre dois tipos de cultura: os que não aceitam limites ao parecer subjectivo da mulher, e os que colocam objectivamente a vida humana acima do sofrimento e das contrariedades pessoais, como acontece em todo o tecido legislativo, e requerem do Estado alguma protecção.
D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real