Do final deste mês de Novembro até ao princípio de Dezembro decorrerá a visita do Papa Bento XVI à Turquia. O facto reveste maior interesse jornalístico por causa do episódio nascido da lição proferida por Bento XVI na universidade de Ratisbona, na Baviera, durante a deslocação do Papa à Alemanha, e na qual se referira explicitamente à necessidade de se fazer o diálogo entre fé e razão. A citação académica de um texto medieval onde um imperador bizantino se referia de modo desfavorável à acção de Maomé, gerou mau ambiente em certos meios muçulmanos, aliás bastante diferentes entre si.
Vale a pena relembrar a proposta do Papa e o seu significado.
É sabido e sentido por toda a gente que o mundo é hoje dominado pelo conhecimento científico e racional e que o pensamento religioso é tendencialmente olhado como não racional nem científico e, consequentemente, marginalizado.
No Ocidente, a Igreja sempre cultivou o diálogo com a razão e a ciência, estando alguns cristãos (leigos e clérigos) incluídos no número dos grandes investigadores, sendo indispensável que esse diálogo continue para bem da própria ciência e civilização. Desde os Gregos aos Romanos e ao Renascimento, o diálogo apresenta-se como arte de ouvirmos o mundo interior dos outros e de eles escutarem o nosso, única maneira de as pessoas crescerem em liberdade. E o que se diz de cada pessoa diz-se de modo análogo dos grupos sociais no interior dos países e dos movimentos políticos entre si. Sem esse diálogo, cair-se-á no «terrorismo», seja qual for a forma dessa atitude: autoritarismo, violência, ditadura, guerra militar. E as religiões também devem aceitar esse diálogo que se traduz no respeito pela consciência moral da pessoa como o santuário último da responsabilidade, não obrigando os fiéis a aceitarem tudo sem discutir, submissos.
No Oriente, as religiões, incluindo o Islão, não têm esta tradição do diálogo com a ciência nem com a consciência, nem sujeitam a sua estrutura doutrinária a uma análise crítica, o que torna essas religiões menos aceitáveis pelo pensamento contemporâneo e difícil o seu diálogo com as outras religiões. Dado o peso que o Islão tem em milhões de pessoas, o Papa Bento XVI propôs aos seus seguidores um diálogo interno com a razão que possa conduzir a uma revisão do terrorismo religioso e constituir base para um diálogo com as outras religiões e barreira comum perante o laicismo do mundo moderno
Durante séculos, esse diálogo entre as próprias religiões foi impensável. Hoje, vai crescendo com alguma dificuldade. Começou-se por partilhar algumas tarefas sociais com os fiéis de várias confissões, de modo que, não se aceitando no modo de crer e de rezar, eles se aceitassem nos actos de bem-fazer. Avançou-se depois em actos comuns de oração expressa em formas genéricas como são os encontros de Assis. Finalmente, em grupos cristãos (católicos, protestantes, ortodoxos) já se ousa falar de aspectos específicos das respectivas doutrinas em ordem a uma remota aproximação. É um avanço notável. Com os crentes não cristãos, como é o caso dos muçulmanos, dos budistas e de outros credos, o diálogo doutrinário não se fará em ordem à união oficial dessas religiões, absolutamente impossível, mas em ordem a uma liberdade de cada fiel e hipotética conversão individual e, sobretudo, em ordem a uma resposta das religiões ao mundo. Esse diálogo só pode ter por base a racionalidade do espírito humano, o elemento comum a todos os crentes, isto é, dialogar sobre a razoabilidade das respectivas posições religiosas e seu contributo civilizacional.
Esta proposta do Papa nasce da consciência crítica do homem moderno e do avanço da laicidade. Frente a esse clima civilizacional da descrença, as religiões são chamadas a responder pela proposta de um humanismo e de uma antropologia nova. O convite do Papa é de uma enorme grandeza cultural e civilizacional, uma vez que o mundo não pode dividir-se entre cristão e muçulmanos, nem entre Ocidente e Oriente, tomando o primeiro como terra de cristãos e o segundo terra de muçulmanos, mas entre humanismos abertos a Deus e humanismo fechados, com reflexos profundos na civilização.
O cristianismo tem uma vasta experiência desse diálogo da «razão e da fé», pois na base da mensagem cristã está a afirmação bíblica e teológica de que o mesmo Deus está na base da criação e na base da redenção, isto é, o Deus que criou o mundo (e nele a inteligência humana) é o mesmo que o redimiu, pelo que as exigências lógicas da razão natural estão presentes nas exigências lógicas da Palavra feita carne ou Jesus Cristo, não podendo haver contradição entre razão e fé, ainda que elas se possam mover em planos diferentes.
São muito diferentes as tradições do Islamismo e de outras confissões que insistem na «obediência total» às respectivas tradições religiosas, sem as passar pelo crivo da razão. Não há um Islamismo único, dirigido por uma autoridade com quem se possa dialogar, mas há variadas tradições dispersas por nações e líderes ciosos dos seus lugares e influências. O seu pensamento é mais emocional que racional, envolto em mitos colectivos geradores de um assinalável fervor religioso. Desse modo, criam-se posições extremistas e desumanas. Recordemos que a palavra «Islão» significa exactamente «submissão». É esse bloqueio absolutizado que urge desfazer para se poder dialogar e responder ao mundo.
Parece que alguns muçulmanos já entenderam o discurso do Papa que não se dirige directamente à conversão de ninguém nem à defesa da cultura laica do ocidente mas à proposta de um novo humanismo, como acima se disse. Há escolas árabes no Líbano e no Egipto cujos professores começam a fazer aquele exercício sugerido pelo Papa.
* Bispo de Vila Real