Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2024
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D. Nuno Álvares Pereira, um Santo

1- No próximo Domingo, dia vinte e seis de Abril, o Papa Bento XVI vai proceder em Roma à «canonização» de D. Nuno Álvares Pereira, isto é, inscrevê-lo na «lista oficial» (cânon) dos Santos da Igreja, proclamando-o digno de ser invocado como intercessor junto de Deus e de ser tomado como modelo de vida cristã em todo o mundo. Uma pessoa unicamente «bem-aventurada» ou «beatificada» só pode ser invocado em determinadas regiões ou dentro de certas comunidades cristãs. O canonizado deixa de ser uma pessoa mais ou menos simpática e com boa fama, e passa a ser rigorosamente um santo «credenciado».

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Durante séculos, era o povo cristão (aqueles que haviam conhecido de perto a pessoa falecida), que proclamava quem era Santo, não havendo processo canónico organizado pela Igreja. Foi assim com D. Nuno Álvares Pereira, logo após a morte.

O processo de canonização é muito exigente, sendo a vida do candidato examinada em todos os aspectos por historiadores, teólogos, juízes dos tribunais eclesiásticos, a fim de se ter a certeza moral da sua vida e da santidade, começando pelo equilíbrio psíquico, pela prática das virtudes teologais e morais em grau heróico e pela ortodoxia dos escritos (se escreveu alguma coisa). Tudo isso leva muito tempo e exige muito dinheiro para pagar a historiadores, viagens, correios, recolha de documentos, cópia e tradução para latim e organização de um processo jurídico próprio dos tribunais. Dizia-me há anos uma mulher piedosa que «é mais fácil ir para o céu do que subir a um altar». Queria ela dizer que Deus conhece mais depressa o valor das pessoas que os homens.

Tenho à minha frente, enviado de Roma em 2007, o grosso volume do processo de canonização de D. Nuno Álvares Pereira. É um volume semelhante e maior que o Missal do altar, belamente encadernado, de cor encarnada, com partes escritas em italiano, em latim, em espanhol e em português. Ali se pode aquilatar do rigor histórico dos documentos consultados, desde o séc XIV até hoje, e ler o depoimento de vinte e seis pessoas consultadas: três padres (um capelão militar, um pároco e um capelão de Fátima), um religioso, duas religiosas, um diácono permanente e dezanove leigos (um solteiro empregado de oficina, um solteiro jornalista, um leigo consagrado com votos, um casado electricista, um casado médico veterinário, uma casada e secretária, um casado e psicólogo, uma casada e professora, um casado solicitador, um casado e professor, um casado e militar, um casado e licenciado em direito, um casado e licenciado em história, dois casados e médicos, um casado e economista, um casado e professor universitário, um casado e da família de D. Nuno Álvares Pereira, um leigo consagrado). Desse volume extraio algumas notas.

2 – D. Nuno nasceu em Cernache do Bom Jardim, Santarém, aos 24 de Junho de 1360, filho de Álvaro Gonçalves Pereira, da Ordem dos Hospitaleiros, e de D. Iria Gonçalves do Carvalhal, dama da Corte. Recebeu a educação cavalheiresca dos filhos das famílias nobres do seu tempo, aos treze anos é pajem de D. Beatriz, filha da Rainha D. Leonor e, pouco depois, é armado cavaleiro. Aos dezasseis anos, a pedido do pai, casa com D. Leonor de Alvim, jovem viúva e rica de uma aldeia de Salto (Montalegre). Do casamento nascem três filhos, dois do sexo masculino que morrem em crianças, e uma menina, D. Beatriz, que mais tarde viria a casar com um filho de D. João I, D. Afonso, e que daria origem à Casa de Bragança. Pela morte de D. Fernando sem filhos varões, os portugueses dividem-se entre os apoiantes do rei de Castelo, casado com D. Beatriz, a filha de D. Fernando, e os apoiantes de D. João I, irmão do falecido rei D. Fernando. D. Nuno toma o partido de D. João I e será por ele nomeado «Condestável do Reino», ou Comandante supremo dos exércitos de Portugal, assumindo a defesa do Reino como uma missão sagrada, e cobre-se de glória em Atoleiros, Aljubarrota e Valverde e percorre todo o país, incluindo esta região do Norte. Chegou a tomar parte na expedição de Ceuta. Com a morte da esposa em 1387, D. Nuno recusa contrair novas núpcias, entra como leigo na vida religiosa no convento do Carmo por ele mandado edificar em Lisboa, e reparte a sua enorme fortuna, constituída por dádivas do rei, pelos antigos companheiros de armas, pelos três netos e pelos pobres, nos quais reconhece o rosto de Cristo e para os quais pede esmolas nas ruas de Lisboa. Aí faleceu no dia 1 de Abril de 1431, dia de Páscoa.

3 – Sabe-se que D. Duarte, filho do rei D. João I e seu sucessor, quando infante visitava D. Nuno no Carmo, não queria que andasse a pedir nas ruas e, após a sua morte, pediu a sua canonização em 1437. O infante D. Pedro, irmão de D. Duarte, compôs uma oração a D. Nuno e escreveu-se até o panegírico que devia ser lido na altura da solicitada canonização. A sua canonização voltou a ser pedida em 1641 e 1647, e o culto mantém-se. Em 1818, o responsável pelos processos de canonização dos santos carmelitas, retomou o processo que se arrastou por causa dos acidentes da República, até que em 1918 o Papa Bento XV proclama a verdade do culto prestado a D. Nuno «desde há séculos». Em 1940, no VIII centenário da nacionalidade, o nome de D. Nuno é dado a colégios, associações, igrejas, ruas e largos. Foi cantado por poetas desde Camões a Fernando Pessoa, Correia de Oliveira, A. Lopes Vieira e Moreira das Neves, pintado e esculpido por vários artistas, e nomeado padroeiro da Infantaria e dos Escuteiros. Nos últimos anos, o Patriarcado de Lisboa e a Ordem do Carmo retomaram o processo que teve o desfecho favorável com um milagre testado oficialmente.

4 – A imagem de D. Nuno que muitos trazem na memória é mais a de um militar que de Santo. E como tudo o que hoje cheire a guerra, a confronto de povos e mortes em combate, a patriotismo e santidade, não goza de simpatia imediata, a figura de D. Nuno continua a ser mais a de um herói militar que de um Santo. Recordo-me de, na minha infância e juventude, ouvir falar de D. Nuno na escola primária, nos escuteiros, de ver a sua imagem de militar e de frade carmelita. Todavia, tudo me parecia envolto num piedoso exagero, porque farda não casava com santidade, nem a espada com amor do próximo. E este arquétipo não deveria ser exclusivamente meu.

Foi, pois, com alegria cultural e júbilo cristão que reli este processo e reflecti na história das mentalidades. Para entender o perfil do cavaleiro cristão medieval e a paixão da fé de D. Nuno, é necessário conhecer bem o ideal da autêntica Cavalaria, beber a sua mística, captar o sentido da guerra defensiva e do enamoramento cristão: a humildade e o espírito de serviço, a defesa dos fracos, dos doentes e da mulher, a piedade eucarística, o amor aos pobres, o sentido da castidade e do desprendimento como o seguimento pessoal de Jesus Cristo, a fidelidade à Igreja, o amor a Santa Maria, Mãe de Deus. É muito belo o estandarte de D. Nuno: a cruz de Avis desenhando quatro cantos, tendo em todos eles outra cruz de Avis e no 1º a imagem de Cristo crucificado com Maria e S. João; no 2º, a Senhora com o Menino; no 3º, S. Tiago; e no 4º S. Jorge.

A história diz-nos que D. Nuno não era um guerrilheiro. Viveu na sua vocação militar a fé e o que hoje chamamos defesa dos direitos humanos: não humilhava os vencidos mas organizava hospitais de campanha para tratar os feridos, mandava vir de Espanha os seus familiares para recompor as famílias e dava-lhes terras para poderem viver aqui, enviava cereais para acudir à fome dos que fugiram em retirada. Sabe-se que já naquele tempo construiu mesquitas e sinagogas para permitir o culto aos muçulmanos e judeus que viviam entre nós, antecipando o diálogo religioso e o direito das consciências! É também com ele que se cria a prática do caldeirão da sopa dos pobres que, com nova urgência, se serve nos Anjos em Lisboa.

Temos de nos habituar a dizer «S. Nuno Álvares Pereira» com a certeza de que assim retratamos melhor o seu coração de português: um cristão no mundo, um verdadeiro homem de Estado, um real amigo dos pobres, um governante para horas de crise.

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