Segunda-feira, 9 de Dezembro de 2024
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Mediador, pontes e mediações

1 – Quase todos os dias é noticiado o trabalho de mediação entre Estados soberanos, entre grupos políticos, entre militantes sindicalizados e entidades patronais, e entre grupos criminosos e as forças da ordem pública. Em casos de crime, de partilhas e de indemnizações, o advogado tem frequentemente essa função. O mundo teve sempre muitos muros e torna-se um puzzle de harmonização difícil. Por isso a Bíblia contém páginas muito belas em louvor dos construtores da paz que são, afinal, mediadores de situações em conflito. De um modo ou de outro, nós próprios fizemos já alguma experiência de mediação, umas vezes em favor de pessoas desavindas, outras vezes como beneficiários da mediação que outros fizeram em nosso favor. Fomos mediadores e fomos mediados.

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2 – Trago isto para aqui como intróito a uma nova reflexão sobre o ministério do Padre neste Ano sacerdotal.

Já aqui se falou de Jesus como «sacerdote novo» e como «nova oferta sacrificial» e, em comunhão com Ele, falei do Padre como ministro desse sacerdócio e dessa oferta sacrificial.

Para falar destes temas utiliza-se por vezes a palavra Mediador que diz quase a mesma coisa. Cristo é o mediador e o Padre é ministro dessa mediação de Jesus entre Deus e o Mundo.

A ideia de mediação atribuída a Jesus não é rigorosamente coincidente com a de «intermediário». Intermediário designa uma terceira pessoa entre outras duas desavindas, e, como terceira, nem pertence a um nem a outro dos contendores desavindos, é instrumental. Foi essa a mediação que houve antes de Jesus, exercida por homens e anjos. Eram mediadores distintos das duas partes, frágeis. Recordem-se os três anjos junto de Abraão, Moisés e Elias, o Arcanjo Rafael junto de Tobias, Gabriel junto de Maria.

Jesus é mais que um intermediário, pois não é alheio às partes, mas pertence aos dois lados: pela sua natureza divina, Jesus Cristo está em permanente comunhão com o Pai; pela sua natureza humana, o mesmo Jesus está em comunhão com o Mundo. Essas duas naturezas formam uma só pessoa divina, uma unidade ímpar, Deus e homem. Jesus é a ponte perfeita, o «pontífice». Não há melhor Mediador entre Deus e o Mundo, pois está interessado com as duas partes. «Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem» (1Tim2,5).

Este título e função de Mediador atribuída a Jesus é praticamente sinónima dos outros títulos de Salvador, de Redentor, de Libertador e de Sacerdote. Cada um destes títulos sublinha um aspecto da mediação de Jesus: como salvador, lembra sobretudo a situação de desgraça de que o mundo foi retirado pela mediação de Jesus; como redentor, lembra a situação de escravo em que se encontrava; como libertador, recorda as cadeias de prisioneiro em que o mundo jazia; como sacerdote, lembra o novo culto da vida que Jesus instaurou; ao chamar-lhe mediador engloba tudo: a desavença geral e a reconciliação entre o mundo e Deus. Por isso, a carta aos Hebreus fala de Jesus «mediador» ( Hebr 9,15) de uma nova aliança depois de falar de Jesus como sacerdote ( Hebr4.14; 5; 6;7; 8,6; 12,24).

3 – A mediação espiritual e religiosa é um tema aparentemente fácil e inocente, mas delicado para o homem moderno, e nasce aí a raiz mais profunda de um certo anti-clericalismo.

O múnus de mediador supõe a existência de duas partes e parcialmente desavindas. O mediador tem de ser respeitador das duas partes e amigo de cada uma delas, e as partes têm de reconhecer a sua deficiência, deixarem-se possuir do espírito de humildade.

Ora o homem moderno, agarrado ao seu subjectivismo e à sua autonomia, não aceita facilmente a doença nem a condescendência com a outra parte. Quando se fala, por exemplo, de escutar a palavra de outrem, de ouvir a Palavra de Deus trazida por Cristo, o homem da modernidade exige cartesianamente que tudo seja do tamanho do seu pensamento; quando se fala em avaliar moralmente a sua actividade, grita que lhe basta a sua consciência e que ela de nada o acusa; quando se fala da obrigação de prestar a Deus a homenagem da condição de criatura, ergue-se do chão e grita que é agnóstico e que não pediu para ser criado; quando se fala da necessidade de se libertar dos grilhões de vícios, protesta que é um homem honrado, um cidadão livre e sem cadeias, e que de nada precisa.

O homem moderno é profundamente autista, uma ilha sem pontes. Por isso, não aceita o sacerdote como pregador de outra Palavra superior à sua, nem a necessidade de fazer outra oferta que não seja em benefício do mundo, de causas sociais e terrenas.

4. Também as outras religiões (e estou a pensar no Islamismo, no Budismo, no Induismo) rejeitam a mediação única de Jesus como uma pretensão indevida. Basta-lhes a mediação das figuras religiosas da sua cultura.

De algum modo, esta tendência para a rejeição de mediações religiosas invadiu as várias confissões protestantes e a própria vivência católica. São cada vez mais os fiéis que, participando dos actos colectivos de Missas e procissões, fogem à Confissão, à pregação da Palavra de Deus e sua explicação catequética. Não aceitam que o sacerdote assuma essa tarefa íntima. No fundo é a doença do agnosticismo e do racionalismo, do velho Adão que se «esconde» de Deus e «foge para longe». Esse tipo de homem faz lembrar o homem retratado por Torga com o nome de «Lázaro», o homem que se afirma doente mas orgulhosamente só, de pé, hirto, cheio de «chagas e migalhas podres» (in «O outro livro de Job»).

5 – Rigorosamente, o sacerdote não é um mediador das consciências, mas aquele que as ajuda a abrirem-se ao diálogo com Jesus Cristo, a estabelecerem com Ele uma intimidade baseada na verdade, liberta de escrúpulos e de subjectivismos, fantasias semelhantes às que todos conhecemos na área da medicina, do direito e dos comportamentos. A influência negativa das fantasias religiosas é que enchem os consultórios de alguns psiquiatras, dos adivinhos, dos espíritas, dos enxotas e de outros curandeiros.

O leitor cristão recorde o refrão tantas vezes ouvido na conclusão de cada Oração oficial: «Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho…», e a doxologia final da anáfora eucarística: «Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai todo poderoso…».

Esta proclamação constante da mediação única de Jesus não exclui a intercessão de Maria e dos outros Santos, mas essas intercessão devem entender-se como fazendo parte da totalidade de Jesus, o seu Corpo pleno. Não são intercessores entre Cristo e nós, numa espécie de roldanas sem fim, mas exemplos brilhantes de seguidores de Jesus que são estímulos para nós (Efes.4,14).

Durante as férias, ao passar por cima de pontes e viadutos, o leitor recorde esta reflexão e exercite-se na leitura dos textos bíblicos: 1Tim2,5; Col 1,16; Efes 4,14; Hebr 4,14; 5;6;7,8; 9,15;12,24.

E boas férias.

 

* Bispo de Vila Real

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