2 – Trago isto para aqui como intróito a uma nova reflexão sobre o ministério do Padre neste Ano sacerdotal.
Já aqui se falou de Jesus como «sacerdote novo» e como «nova oferta sacrificial» e, em comunhão com Ele, falei do Padre como ministro desse sacerdócio e dessa oferta sacrificial.
Para falar destes temas utiliza-se por vezes a palavra Mediador que diz quase a mesma coisa. Cristo é o mediador e o Padre é ministro dessa mediação de Jesus entre Deus e o Mundo.
A ideia de mediação atribuída a Jesus não é rigorosamente coincidente com a de «intermediário». Intermediário designa uma terceira pessoa entre outras duas desavindas, e, como terceira, nem pertence a um nem a outro dos contendores desavindos, é instrumental. Foi essa a mediação que houve antes de Jesus, exercida por homens e anjos. Eram mediadores distintos das duas partes, frágeis. Recordem-se os três anjos junto de Abraão, Moisés e Elias, o Arcanjo Rafael junto de Tobias, Gabriel junto de Maria.
Jesus é mais que um intermediário, pois não é alheio às partes, mas pertence aos dois lados: pela sua natureza divina, Jesus Cristo está em permanente comunhão com o Pai; pela sua natureza humana, o mesmo Jesus está em comunhão com o Mundo. Essas duas naturezas formam uma só pessoa divina, uma unidade ímpar, Deus e homem. Jesus é a ponte perfeita, o «pontífice». Não há melhor Mediador entre Deus e o Mundo, pois está interessado com as duas partes. «Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem» (1Tim2,5).
Este título e função de Mediador atribuída a Jesus é praticamente sinónima dos outros títulos de Salvador, de Redentor, de Libertador e de Sacerdote. Cada um destes títulos sublinha um aspecto da mediação de Jesus: como salvador, lembra sobretudo a situação de desgraça de que o mundo foi retirado pela mediação de Jesus; como redentor, lembra a situação de escravo em que se encontrava; como libertador, recorda as cadeias de prisioneiro em que o mundo jazia; como sacerdote, lembra o novo culto da vida que Jesus instaurou; ao chamar-lhe mediador engloba tudo: a desavença geral e a reconciliação entre o mundo e Deus. Por isso, a carta aos Hebreus fala de Jesus «mediador» ( Hebr 9,15) de uma nova aliança depois de falar de Jesus como sacerdote ( Hebr4.14; 5; 6;7; 8,6; 12,24).
3 – A mediação espiritual e religiosa é um tema aparentemente fácil e inocente, mas delicado para o homem moderno, e nasce aí a raiz mais profunda de um certo anti-clericalismo.
O múnus de mediador supõe a existência de duas partes e parcialmente desavindas. O mediador tem de ser respeitador das duas partes e amigo de cada uma delas, e as partes têm de reconhecer a sua deficiência, deixarem-se possuir do espírito de humildade.
Ora o homem moderno, agarrado ao seu subjectivismo e à sua autonomia, não aceita facilmente a doença nem a condescendência com a outra parte. Quando se fala, por exemplo, de escutar a palavra de outrem, de ouvir a Palavra de Deus trazida por Cristo, o homem da modernidade exige cartesianamente que tudo seja do tamanho do seu pensamento; quando se fala em avaliar moralmente a sua actividade, grita que lhe basta a sua consciência e que ela de nada o acusa; quando se fala da obrigação de prestar a Deus a homenagem da condição de criatura, ergue-se do chão e grita que é agnóstico e que não pediu para ser criado; quando se fala da necessidade de se libertar dos grilhões de vícios, protesta que é um homem honrado, um cidadão livre e sem cadeias, e que de nada precisa.
O homem moderno é profundamente autista, uma ilha sem pontes. Por isso, não aceita o sacerdote como pregador de outra Palavra superior à sua, nem a necessidade de fazer outra oferta que não seja em benefício do mundo, de causas sociais e terrenas.
4. Também as outras religiões (e estou a pensar no Islamismo, no Budismo, no Induismo) rejeitam a mediação única de Jesus como uma pretensão indevida. Basta-lhes a mediação das figuras religiosas da sua cultura.
De algum modo, esta tendência para a rejeição de mediações religiosas invadiu as várias confissões protestantes e a própria vivência católica. São cada vez mais os fiéis que, participando dos actos colectivos de Missas e procissões, fogem à Confissão, à pregação da Palavra de Deus e sua explicação catequética. Não aceitam que o sacerdote assuma essa tarefa íntima. No fundo é a doença do agnosticismo e do racionalismo, do velho Adão que se «esconde» de Deus e «foge para longe». Esse tipo de homem faz lembrar o homem retratado por Torga com o nome de «Lázaro», o homem que se afirma doente mas orgulhosamente só, de pé, hirto, cheio de «chagas e migalhas podres» (in «O outro livro de Job»).
5 – Rigorosamente, o sacerdote não é um mediador das consciências, mas aquele que as ajuda a abrirem-se ao diálogo com Jesus Cristo, a estabelecerem com Ele uma intimidade baseada na verdade, liberta de escrúpulos e de subjectivismos, fantasias semelhantes às que todos conhecemos na área da medicina, do direito e dos comportamentos. A influência negativa das fantasias religiosas é que enchem os consultórios de alguns psiquiatras, dos adivinhos, dos espíritas, dos enxotas e de outros curandeiros.
O leitor cristão recorde o refrão tantas vezes ouvido na conclusão de cada Oração oficial: «Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho…», e a doxologia final da anáfora eucarística: «Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós, Deus Pai todo poderoso…».
Esta proclamação constante da mediação única de Jesus não exclui a intercessão de Maria e dos outros Santos, mas essas intercessão devem entender-se como fazendo parte da totalidade de Jesus, o seu Corpo pleno. Não são intercessores entre Cristo e nós, numa espécie de roldanas sem fim, mas exemplos brilhantes de seguidores de Jesus que são estímulos para nós (Efes.4,14).
Durante as férias, ao passar por cima de pontes e viadutos, o leitor recorde esta reflexão e exercite-se na leitura dos textos bíblicos: 1Tim2,5; Col 1,16; Efes 4,14; Hebr 4,14; 5;6;7,8; 9,15;12,24.
E boas férias.
* Bispo de Vila Real