Domingo, 1 de Dezembro de 2024
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O Ano Paulino: Apoio

1 – Há pessoas cujo nome e vida ficaram na tradição como símbolos de um determinado tipo de comportamento. É o caso do «Zé do Telhado», conhecido como o ladrão que roubava aos ricos para dar os pobres, e da «Dona Branca», a financeira fraudulenta, banqueira do povo. Na área bíblica, conhecem-se o caso do Apóstolo Tomé, o homem desconfiado de tudo menos da sua experiência pessoal; o de Judas Iscariotes, o ambicioso, frustrado e traidor; o do pobre Lázaro, a pessoa esquecida à porta do rico avarento; o da Verónica, a mulher compadecida e corajosa perante um réu humilhado; o da Marta e da Maria, a delicadeza consumada da hospitalidade feminina; o do Cireneu, o braço forte que vai em ajuda do condenado; o de Maria Madalena, a mulher das mil desgraças e eternamente agradecida pela sua cura.

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2 – Na vida de Paulo há um seu colaborador, judeu convertido, culto e eloquente, que pode configurar uma face da evangelização. Refiro-me a Apolo.

O seu nome aparece duas vezes nos Actos dos Apóstolos (18,24-28; 19,1) e várias na 1ª carta aos Coríntios (1,12; 3,4-6.22; 4,6;16,12) e a Tito (3,13). Era natural de Alexandria e nessa cidade recebera de outro judeu, Fílon, lições sobre a arte de harmonizar a lei de Moisés com a filosofia helenista. Apolo foi, primeiro, discípulo de S. João Baptista e, em Éfeso, o casal Áquila e Priscila iniciou-o na doutrina de S. Paulo. Há quem lhe atribua a autoria da carta aos Hebreus por causa do profundo conhecimento do culto judaico e do sacerdócio levítico e da elegância do texto.

Um grupo de cristãos de Corinto, em viagem de negócios por Éfeso, ouviram Apolo falar na assembleia semanal da cidade, e levaram-no para Corinto onde pregou brilhantemente à comunidade que Paulo ali havia organizado. Depressa perceberam a diferença entre Paulo e Apolo: enquanto Paulo era directo, incisivo, insistindo permanentemente no mistério de Jesus crucificado como fonte de vida e exemplo de uma humanidade autêntica e evitando reflexões culturais que julgava pura perda de tempo por distraírem do essencial, Apolo, sendo um cristão formado na escola de Paulo, sabia relacionar a mensagem cristã com conceitos filosóficos da cultura helenista e gostava de o fazer. Paulo tinha um discurso oral pouco brilhante, ao passo que Apolo era um bom comunicador, com beleza de forma e horizontes alargados. Numa palavra, Paulo conduzia as pessoas ao amor afectivo e efectivo a Jesus, à oração e ao compromisso de vida; Apolo fazia a reflexão cultural da fé, relacionava entre si os temas da mensagem cristã e cultivava o diálogo da fé com a cultura.

Rapidamente se afeiçoaram a ele alguns cristãos de Corinto, apresentando-se como o «grupo de Apolo», em oposição ao «grupo de Paulo», ao «grupo de Pedro» (algo judaizantes) e aos que se diziam simplesmente do «grupo de Cristo». Quando Apolo se apercebeu dessa confusão, lealmente deixou a cidade de Corinto, regressou a Éfeso e nunca mais lá voltou. Mais tarde, Paulo e Apolo encontraram-se (só então se conheceram pessoalmente) e viram com clareza serem homens de carismas diferentes e complementares: «Eu plantei, Apolo regou, mas a graça de Deus é que deu o incremento», diria Paulo. Ainda pediu a Apolo que voltasse a Corinto, mas Apolo manteve a sua decisão. Aparecerá mais tarde em Chipre, a receber apoio de Tito para a viagem

3 – Paulo sabia por experiência que a comunidade de Corinto era complexa e heterogénea, ameaçada pelo relaxamento de costumes e pela presença de templos e crenças orientais, dada a êxtases espirituais e ritos secretos, e já a havia advertido por meio de uma carta primitiva que se perdeu. Por isso, quando em Éfeso soube das repercussões do trabalho de Apolo entre os coríntios, escreveu-lhes a actual ICor, uma carta doutrinária, com algum recurso à ironia contra os coríntios vaidosos e presunçosos, que viviam divididos em grupos rivais, contestavam a autoridade de Paulo, celebravam desordenadamente a Eucaristia, recorriam aos tribunais pagãos, admitiam situações sexuais escandalosas. E tudo isto por uma falsa intelectualidade, distorcendo afirmações de Paulo feitas durante a primeira evangelização, e agora de Apolo, invocando o «espírito novo» e a «liberdade cristã» que entendiam como direito a viver uma liberdade acima de todas as leis, quando eles se referiam somente à lei de Moisés!

Informado por Timóteo, que se encontrava em Corinto, da reacção desagradável dos coríntios a essa carta, Paulo escreveu outra, de que foi portador Tito, a chamada «carta das lágrimas», algo severa e que também se perdeu. Anos depois, quando Paulo já estava na Macedónia, com mais calma e reflexão escreveu uma última carta aos Coríntios, que é a actual 2Cor. O texto que temos é um pouco desordenado e parece uma composição com pedaços da tal primeira carta (2 Cor 6,14-7,1) e da «carta das lágrimas» (2 Cor 10-13), e dois textos sobre a colecta para Jerusalém (2Cor 8-9). Nesta 2ª Cor sente-se vibrar o perfil do pastor: objectivo e corajoso perante a realidade, compreensivo diante das atitudes estranhas das pessoas, e firme no seu governo (Spicq).

Nesta evocação de Apolo, mais que analisar as cartas paulinas aos coríntios, o que desejo é fixar a diferença da pregação de Paulo e de Apolo: Paulo é o catequista do essencial, de Jesus crucificado e da união da comunidade; Apolo é o educador da inteligência da fé e do diálogo fé cultura.

São duas etapas da evangelização e complementares. De facto, a fé cristã nasce da boa nova notícia da morte e ressurreição de Jesus e esse núcleo gera depois a reflexão sobre o relacionamento interno das verdades da fé e com a cultura. Essa reflexão deve levar as pessoas a mais oração, a maior comunhão eclesial, a maior empenho evangelizador. Sem isso, será mero academismo. Paulo, que conhecera o fracasso da dialéctica cultural em Atenas, tinha algum receio do recurso a esses exercícios intelectuais, sobretudo com gente como a de Corinto. Não os desprezava e até convidou Apolo a voltar a Corinto, mas temia que tudo redundasse em brilharetes doutorais e prazer de discussões.

4 – Chegados aqui, é altura de nos interrogarmos sobre a actualidade. Que actividades evangelizadoras há entre nós que possamos classificar de «fase de Paulo» e «fase de Apolo»? Completam-se mutuamente ou geram dicotomias como prática religiosa sem estudo da fé, ou estudo sem oração ou nem oração nem estudo?

Concretamente, que se passa com os Catequistas, Pais e crianças da catequese?

E com os Professores de Moral, alunos, escuteiros e outros jovens? E com os Teólogos, Clero e Religiosos?

Diz-se que, antigamente, havia menos cultura escolar e menos informação, mas havia mais convicção e mais fiel transmissão da fé; e que, actualmente, há mais revistas teológicas, mais semanas bíblicas, mais anos de catequese, mas parece descer a vida cristã. Que se passa? São os crentes que se refugiam nos actos de culto e substituem a Bíblia por uma vela, ou é a cultura da fé que virou especulação sem piedade, Bíblia sem vela?

Paulo gostava de dizer que Deus não o enviou a baptizar, mas a evangelizar. Será que os fiéis inverteram as coisas e só desejam os sacramentos, mesmo sem instrução? Vivendo de uma prática rudimen-tar,sem uma reflexão mais profunda, poderão resistir às chuvas ácidas de ideias que diariamente caem sobre eles?

Que mudanças é preciso introduzir na pastoral da fé, catequese e pregação? Vale a pena ler devagar os quatro primeiros capítulos da 1ª Carta aos Coríntios.

 

* Bispo e Vila Real

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