No final do ano de 2008 apareceram também alguns livros de «memórias»: memórias políticas e memórias militares, memórias académicas e memórias artísticas. Em todas há pedaços de vida, comentários orientados e comentários pontuais, gritos de alma e profissões de lealdade. Nenhum desses textos constitui tese de doutoramento, de exposição densa e sistemática.
2 – Algo semelhante acontece com as famosas cartas de S. Paulo que andamos a ler neste Ano Paulino: cartas de índole pastoral, quase familiares, dirigidas a comunidades cristãs já organizadas e aos seus responsáveis, excepto uma, a carta aos Romanos, que é destinada a preparar a visita e passagem para a Espanha. São cartas de agradecimento e de felicitação, de esclarecimento e formação, cartas de admoestação e de encorajamento. Quando as escreveu, nem Paulo suspeitava o eco que elas iriam ter no futuro. No plano de Deus, são textos escritos também por nossa causa e para nós, sendo necessário agora transpô-las, isto é, ver as circunstâncias que as inspiraram e confrontá-las com o tempo actual.
Na Bíblia estão catorze cartas, mas pelo que Paulo diz em algumas delas ele escreveu mais, que depois se perderam. Das catorze, uma delas, a carta aos Hebreus, não é de S. Paulo nem da sua temática, como se nota pelo estilo e pelo assunto. Das treze, sete são mesmo de Paulo e chamam- -se «autênticas» ou «protopaulinas»: aos Romanos, aos Coríntios (duas), aos Gálatas, aos Filipenses, a Filémon, e a 1ª aos ´Tessalonicenses. Dizer autênticas não significa que fossem escritas pela sua própria mão, mas ditadas ou revistas e assinadas por ele. As outras seis reflectem o que Paulo pregou mas foram escritas por discípulos seus, chamadas por isso cartas «deuteropaulinas»: 2ª aos Tessalonicenses, aos Efésios, aos Colossenses, as duas a Timóteo, e a Tito. O que é fundamental é saber que todas elas reflectem o pensamento de Paulo, e, sobretudo, que foram inspiradas por Deus.
O nome por que são conhecidas vem-lhes dos destinatários. Esse nome não foi posto pelo autor, mas retirado mais tarde do interior das cartas. Uma delas, a carta aos Efésios, parece mais uma circular geral que uma carta localizada, pois nem tem saudação inicial nem cita o destinatário no texto. Há três que, por se dirigirem especialmente aos Pastores da Igreja a quem dá orientações sobre o modo de organizar as comunidades, são chamadas cartas «pastorais»: as duas a Timóteo e a Tito. Pelo lugar especial em que foram escritas, a prisão, quatro dizem-se «cartas do cativeiro»: aos Filipenses, aos Efésios, aos Colossenses e a Filémon (Paulo esteve preso em vários lugares).
Como se vê, as cartas podem agrupar-se de muitos modos. Na Bíblia estão ordenadas pela sua importância. Mas podem agrupar-se de outros modos: ou pelo remetente (Paulo sozinho ou associando a si outros colaboradores), ou pelos destinatários, ou pelo lugar da redacção, ou pelo assunto tratado , ou até pela extensão ( a carta a Filémon é a mais breve, quase um bilhete postal de recomendação), ou pela data em que foram escritas. Segundo este critério, seriam: 1ª e ª2 aos Tessalonicenses, 1ª e 2ª aos Coríntios, 1ª a Timóteo, a Tito, aos Gálatas, aos Romanos, 2ª a Timóteo, aos Colossenses, a Filémon, aos Efésios, e aos Filipenses. Este critério da data é muito discutido entre os especialistas.
3 – O esquema das cartas é o utilizado no seu tempo: apresentação dos responsáveis do texto e saudação inicial (um acto de louvor a Jesus Cristo ou à Santíssima Trindade), seguida da afirmação jubilosa e humilde da sua vocação, exposição de resposta às questões formuladas, saudações finais e assinatura, indicando o secretário do texto se o houver. Como são de anos ligeiramente diferentes e para públicos distintos, as cartas constituem uma espécie de «memória» da vida dos primeiros cristãos, do seu heroísmo e das suas dúvidas, da novidade do cristianismo e da resistência dos judeus e dos pagãos, e até desenham o mapa geográfico e histórico das margens do Mediterrâneo.
Para as compreender, ajuda saber agrupar as cartas, como acima se fez, mas o importante é mesmo lê-las devagar e muitas vezes, cruzando umas com as outras. As edições actuais já trazem indicado esse cruzamento
Há temas que se repetem, tais como a novidade da pessoa de Jesus e do Cristianismo em confronto com o judaísmo, e há temas específicos de algumas, como a situação geral do pecado no mundo, mais tarde chamado «pecado original» (Romanos), a liberdade cristã perante a lei de Moisés (Romanos e Gálatas), os carismas e a unidade da Igreja, a colaboração das mulheres, a moral sexual (Coríntios), a escravatura (Filémon), Jesus Cristo e anjos e filosofias e esoterismo (Colossenses), a Igreja e o seu mistério (Efésios). Em toda a exposição doutrinária o centro é sempre a pessoa de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, que actua pelo Espírito Santo. É o conhecido e importantíssimo «Cristocentrismo» de Paulo. Para Paulo, ser cristão não é saber uma doutrina ou obedecer a uma lei, mas amar uma pessoa e o seu projecto de vida-Jesus Cristo, e, por Ele, fazer tudo. Nisso Paulo é insuperável: desde a estrada de Damasco até à morte mantém o encanto por Jesus Cristo, conhecendo-O cada vez melhor e tomando consciência da sua vida.
A linguagem de Paulo é uma linguagem retirada da vida das cidades e não do campo, com recurso aos conceitos da época: liberdade/escravatura, muros/reconciliação, trevas/luz, morte/ressurreição, antigo/novo, já/ainda não, início/desenvolvimento, pecado/graça, esforço do homem/iniciativa de Deus, desporto/ascese cristã, meta/eternidade. As comparações materiais utilizadas são o «corpo», o «edifício», a «construção», o «estádio», o «arquitecto», a «tenda» e uma vez a «semente». Na pregação aos judeus Paulo argumenta a partir da «tradição»; quando se dirige aos pagãos, a partir da razão e da maioria.
Paulo não é um filósofo, frio e distante, um cerebral que faz considerações curiosas, como Papini nas «Cartas aos homens do Papa Celestino VI», uma agradável ficção moralizante, mas responde a perguntas que lhe são dirigidas e questões que a vida levantou. Fala a destinatários concretos e fala com a cabeça e o coração, com sentimento e firmeza. Paulo é um homem de pensamento intuitivo, capta depressa os problemas e, ao responder, o pensamento brota-lhe como torrente impetuosa que por vezes abafa a forma e rodopia sobre si mesmo, repetindo-se, parecendo confuso, mas tudo se esclarece lendo até ao fim. Quem souber grego (foi essa a língua original da redacção) poderá admirar a estilo, a beleza de algumas palavras verbos escolhidos e, desse modo, perceber melhor o alcance das ideias e afectos. Paulo não se interessa por efeitos literários, mas sabe usá-los quando é preciso para conseguir os seus intentos pastorais: fazer conhecer a pessoa de Jesus, o mistério da Igreja e, através dele, o plano eterno de Deus para o bem do mundo.
4 – Parece que a Providência de Deus não podia ter escolhido pessoa melhor preparada para aquele trabalho: judeu piedoso, típico, conhecedor do Judaísmo e da cultura grega, de inteligência robusta e sensível, fiel às amizades. A sua vida é toda atravessada por um sentimento de júbilo e segurança, como uma sinfonia levada até ao último compasso.
Convido o leitor a fazer um esforço para ler estas cartas, mas devagar, e a interrogar-se sobre a razão por que elas são geralmente mal proclamadas na liturgia dos Domingos: não será por serem textos de pensamento e afecto, e as pessoas andarem hoje habituadas a folhetins?