Terça-feira, 10 de Dezembro de 2024
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O Ano Paulino – Nevões, Bombeiros e Salvações

1 - Agora que se aproxima a Primavera cheia de sol e alfazema, vem ao pensamento, por contraste, o cenário recente do Inverno. Aqui em Trás-os-Montes pudemos ver directamente, e em todo o país através da televisão, os efeitos dos nevões e das geadas: montes confundidos com vales, outeiros disfarçados de nenúfares, gente perdida na estrada, carros despis- tados em ravinas e transformados em montes de ferros, pessoas resgatadas por bombeiros e conduzidas urgentemente aos hospitais. Tudo isso como efeito do optimismo ingénuo perante o nevão que tudo nivela traiçoeiramente, transforma as pedras em falsa almofada e perturba os carros que surgem no meio do nevoeiro como míopes de passo nervoso ou caçadores furtivos. Até os sinais de perigo nas estradas falam demasiado baixo. Como prevenir esta ameaça de todos os Invernos, libertar rapidamente os sinistrados, salvar os feridos, e convencer as pessoas da realidade que se oculta debaixo da neve? Prevenir, libertar, salvar, fazer entender a realidade oculta – cinco palavras-chave do processo de libertação dos perigos de cada Inverno.

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2 – Num plano existencial mais profundo, é essa a questão central da carta aos Romanos, de que já se fez aqui a introdução e apresentação geral. Trata de salvar o mundo de uma geada muito mais profundo que a do Inverno, e que afecta os próprios salvadores das invernias climatéricas: bombeiros, médicos e enfermeiros, políticos e governantes, pais, professores. Essa doença profunda manifesta-se exprime-se em três áreas: a divisão no interior de cada homem que o torna incapaz de seguir o bem que reconhece e, pelo contrário, pratica o mal que condena; o enigma do sofrimento e da morte que se ri permanentemente das conquistas do homem rei; e o desequilíbrio social que se mantém como espécie de maldição ao longo da história. S. Paulo reúne as três manifestações na expressão bíblica «a ira de Deus» que, na linguagem bíblica, se assemelha a um castigo divino (Rom 1,18)

O desejo de salvação dessa doença profunda constitui uma aspiração permanente da humanidade e processa-se em dois momentos: «sair de» e «ir para», o fosso donde se sai e a «terra prometida» para onde se avança. Na história bíblica esses dois pólos foram respectiva e progressivamente, o Egipto e o faraó, a Babilónia e a Assíria, os Romanos e os Gregos, o jugo estrangeiro e a cultura pagã; a Palestina, o reinado de David, a vinda do Messias, o reino de Cristo e o Céu. Diga-se desde já que o Céu, a terra prometida na salvação cristã, mas não retira o homem da terra para o colocar a olhar para o céu, numa espécie de nirvana ou ataraxia orientais. Pelo contrário, inclui o empenho activo na transformação do mundo, libertando a mente do nevoeiro que a impede de ver o caminho até ao fim, e o coração das ventosas que o prendem aos interesses egoístas e o impedem de voar e de servir com generosidade.

A esta transformação gradual do homem, só possível pela Palavra e força de Jesus Cristo, chama S. Paulo a «justificação», «salvação», «redenção» e «libertação», ainda que haja entre esses termos pequenas subtilezas: justificação é a alegria que essa mudança do homem produz no coração de cada um e em Deus, salvação supõe o estado de perdição e incapacidade de sair dele por meios humanos, redenção implica o pagamento de dívidas e hipotecas do doente, libertação traz consigo a ideia de prisão e de cadeias, e está hoje mais em vigor em virtude da sua tonalidade social. A reflexão teológica coloca tudo isso sob a denominação de «soteriologia». Nós ficamo-nos pela linguagem de jornal.

3 – Para iniciar o processo de salvação cristã exige-se, portanto, o reconhecimento da doença, a geada que paralisa o homem, o nevoeiro que tolda o seu olhar, as ilusões que ocultam o caminho real, a surdez que perturba a audição. A reacção do homem doente reveste uma destas três atitudes: negar a doença e continuar a viver indiferente, aceitar a doença mas procurar vencê-la unicamente pelo esforço humano, reconhecer a doença e aceitar o auxílio divino.

O primeiro esforço de Paulo foi convencer os Romanos do vírus nas relações humanas e nas relações com Deus e da auto-suficiência do homem. Os judeus julgavam-se «santos» por possuírem a lei de Moisés, acima dos povos «gentios» ou «pagãos» ou «pecadores»; os gregos e romanos ufanavam-se da sabedoria filosófica e das leis do império, tinham-se como «sábios» e «civilizados», sobranceiros aos que não falavam grego nem latim, os «bárbaros». Paulo coloca-lhes diante de todos o estendal de misérias: os muros culturais, étnicos e religiosos que dividem os povos; os ódios e mortes que desprezam a vida; misticismos que levam à criação de povos santos e malditos, à prostituição no próprio culto, à perda de sentimentos naturais e à inversão da própria relação biológica sexual (Rom 1,16;23).

4 – Se o leitor fez os estudos secundários ou leu algo sobre a história da cultura europeia no séc. XVIII, XIX e XX, recordará os nomes de Rousseau, Marx, Freud, Nietzsche, Sartre. Apresentaram-se como «salvadores» do homem e da sociedade. Rejeitam qualquer doença profunda do homem ou, se alguma existe, atribuem-na unicamente à sociedade e propõem uma salvação feita pelas forças do próprio homem, incluindo a revolução sangrenta. São todos ateus afirmando que o primeiro causador da doença do homem é a ideia de Deus, que aflige o homem com pessimismos, o aliena da realidade com o sonho do outro mundo, o enche de complexos e neuroses pela repressão da sexualidade, o humilha e entristece com a sujeição a leis que ele não fez e lhe retira a plena soberania e a vontade de poder. Tornaram-se os pais deste filho serôdio que hoje dá pelo nome de «laicismo» arrumando Deus da sociedade como obstáculo à plena liberdade dos Estados. Ultrapassaram os filósofos que Paulo encontrou no areópago de Atenas que se riam de tudo o que não passasse pela sua alta sabedoria.

Os resultados históricos da sua proposta de salvação vêm todos narrados nos anais dos últimos séculos: nazismo e comunismo, arquipélagos gulags, campos de reeducação e de extermínio, sociedades desfeitas, fome e miséria generalizada, Maio de 1968 em França e em toda a Europa, total liberdade sexual, família destruída pelo divórcio facilitado e consequente multidão de homens e mulheres que se amaram agora separados e roídos de ciúmes e saudades, natalidade congelada, aborto oficial gratuito e tentativa de casamento entre pessoas do mesmo sexo! Tais «salvadores» agravaram ainda mais a doença humana, tornando-se parte do problema. Alguns deles já desistiram de qualquer saída, abraçam o absurdo, e propõem o suicido como cura final (eutanásia), à maneira do moralista pagão Séneca, contemporâneo de S. Paulo, o qual cortou as veias durante o banho para se livrar do tempo desgraçado de Nero!

5 – Munido deste caderno de notas, o leitor continue corajosamente a leitura da carta aos Romanos (Rom 3,21-31;5,1-11;12-14), na certeza de nela encontrar a radiografia do homem de sempre, doente mas agora vestido de holanda.

Tudo continua muito «romano»: os povos e culturas – judeus, gregos e romanos, escravos e cidadãos do império, homens e mulheres, sábios e ignorantes, democratas e autoritários de todos tempos, conservadores e progressistas, políticos da esquerda, do centro e da direita – carecem Jesus Cristo, o único capaz de dar o equilíbrio interior, de livrar do sofrimento desesperado e morte, de ultrapassar a conflitualidade pela justiça social, solidariedade fraterna e afastamento da vingança. Nascem assim os «homens novos» que farão surgir uma «sociedade nova».

 

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