É assim a carta de S. Paulo aos Romanos, uma lição de mestre sobre a fé cristã, um documento notavelmente bem ordenado, calmo e reflectido. Ocupa o primeiro lugar na Bíblia tradicional, a mais densa e mais longa, e considerada por toda a tradição como a mais importante, ainda que não seja a mais abrangente.
2 – Foi escrita e enviada de Corinto, já na segunda parte da vida do Apóstolo, o tempo das sínteses, e quando ele se preparava para ir a Jerusalém levar a colecta oficial para os cristãos mais pobres e onde temia o pior para si próprio. Confiava, porém, que acabaria por vencer a perseguição habitual dos judeus e depois poderia deslocar-se a Roma para pregar à comunidade local que há muito desejava ver e dar um salto à Espanha. É a única carta enviada por Paulo a uma comunidade da qual não havia sido o evangelizador e a preparar a visita (Rom15,22-33).
Paulo sabia que a comunidade cristã de Roma era muito antiga, desconhecendo-se o seu fundador. Quando se deu o Pentecostes cristão em Jerusalém, já aí se encontravam judeus piedosos idos de Roma e é possível que tenha sido esse o gérmen da comunidade. A princípio, os cristãos de Roma confundiam-se, para bem e para mal, com os simples judeus, como aconteceu com a perseguição de Cláudio contra os judeus que levou à fuga de Roma do casal cristão Áquila e Priscila que, uma vez em Corinto, informara Paulo do que se passava em Roma. Na comunidade de Roma havia cristãos vindos do paganismo (a maior parte deles e considerados os «fortes»), e cristãos vindos do judaismo (em menor número e considerados pelos outros os «fracos»), e, à sua volta, reinava o clima pagão da capital do império – uma Babilónia com um milhão de habitantes de todas as raças, a maioria escravos, e militares, funcionários públicos, filósofos e moralistas, religiões e comportamentos para todos os gostos, gente culta e gente analfabeta, o luxo de uns poucos em cima da miséria de muitos.
Paulo tem em conta tudo isso, e sabe que não escreve para principiantes. Esmera-se na organização do texto com uma apresentação inicial (1,1-15), a indicação do tema central (1,16-17) e seu desenvolvimento em várias etapas (1,18-11), exortação final e saudações (15-16). A parte central da carta apresenta uma intrincada argumentação que revela um conhecimento impressionante da Sagrada Escritura e a técnica consumada de um rabino na exploração dos textos bíblicos, e é esse estilo que dificulta a leitura. Não falta o recurso à arte literária com um hino belíssimo (11, 33-36).
O tema central é a «justificação», uma palavra religiosa técnica que poderemos igualar a «salvação» ou «redenção». Nesse tema central inclui temas parcelares: a universalidade do pecado nos pagãos e nos judeus que mais tarde se chamará «pecado original», o valor da consciência moral natural, o valor da lei de Moisés, a harmonização do Antigo e do Novo Testamento como duas etapas do único processo revelador, e a acção do Espírito Santo na vida do cristão.
Alguns dos temas parcelares já haviam sido expostos por Paulo em cartas anteriores, mormente aos Coríntios e aos Gálatas, mas aí fizera-o de modo nervoso, rápido, algo indignado pelo ar traiçoeiro dos judaizantes e ligeireza dos Gálatas. Agora retoma-os e aprofunda-os em torno da «justificação» Por isso, a carta aos Romanos é conhecida como a carta da «justificação pela fé em Cristo».
3 – A «justificação» é um tema especificamente religioso fundamental. As palavras «justo», «justiça» e «justificação» cruzam-se em toda a Bíblia: casos do «justo» Abel, da «justiça» de Abraão, dos «justos de Iavé». Jesus também falará muitas vezes da «sua justiça», diferente da que vinha dos judeus e da lei de Moisés.
«Justificação» não tem aqui o sentido de justiça distributiva, dar a cada um o que ele merece sem ofender os outros. Isso seria uma questão de moral. Aqui trata-se de saber o que é que torna o homem «agradável» a Deus, o que é que ele há-de fazer para ser «bom» e «justo»? É uma questão de doutrina, uma questão fundamental. Coloca-se no princípio de tudo para não andarmos a correr caminhos falsos e a usar meios inadequados. Nesta questão fundamental Paulo afirma solenemente que «o homem só se torna «justo», «só é justificado», só é «bom» e «agradável a Deus», pela fidelidade ao plano de Deus revelado em Jesus Cristo. Dito de outro modo, o homem não pode salvar-se a si mesmo, pelos seus meios e pelas suas ideias. Cristo é o caminho e é a força dada ao caminhante, não podendo ninguém inventar caminhos alternativos nem afirmar-se «bom» por suas forças.
Note-se que S. Paulo não se refere somente ao aspecto espiritual de quem procura o céu, o outro mundo. Ele abarca a capacidade do homem neste mundo, a própria antropologia, a vida na terra: sem Cristo nem a própria civilização humana terá saúde! Por isso é que esta carta foi estudada por católicos e protestantes, teólogos e filósofos, com reflexos na antropologia e pedagogia.
Paulo desenvolve a sua tese por etapas: o tempo do pecado dos pagãos, dos judeus e de todos os homens (1,18-3,20); a justificação pela fé no tempo presente (3,21-4) e na glória (5,1-11), a justificação pelo baptismo (6-7,6), a justificação vivida pela vida espiritual (7,7- 8,39).
A terminar a reflexão central, Paulo, por amor ao seu povo e por exigência da verdade, consola Israel ensinando que, apesar de haver rejeitado a Jesus Cristo, não se tornou um povo maldito e, a seu tempo, há-de descobrir Jesus ressuscitado, como aconteceu com ele. Mais: ao aderirem a Jesus ressuscitado, os pagãos são, de algum modo, árvores silvestres enxertadas na oliveira israelita que é Jesus Cristo (11). Um piropo de israelita!
4 – A carta aos Romanos é a carta do absoluto de Deus, uma carta radical, atinge o cerne da própria capacidade humana. Paulo destrói a arrogância de gregos, romanos e judeus, de filosofias e culturas salvadoras: lembra aos judeus que a «eleição» do antigo povo hebreu não fez dele um povo superior mas confere-lhe unicamente o carácter de preparação do Messias; e lembra aos pagãos que a sua cultura, a organização política e a consciência pessoal se corromperam, aceitando até a inversão da natureza.
Na vida corrente não se fala muito desta carta, preferindo os gestos da misericórdia e da esmola. Ora a fé cristã é, antes de mais, a revelação do mundo como Criação de Deus e sinal da sua vontade, e revelação do «estado» em que se encontra o Homem, desorientado e carecido de Jesus Cristo salvador. Por isso, Jesus não é para o mundo um produto extra, um luxo dispensável. Fora desse «plano», as próprias coisas do mundo andarão «fora dos eixos», «infrutíferas», saiba-se ou não se saiba: tudo se pulveriza, sejam as leis sobre a natureza (geração, vida, morte, casamento, aborto, eutanásia), sejam as leis religiosas. O drama do nosso tempo começa por ser o drama de um pensamento débil, fluido, dito «pensamento livre», melhor se dirá «fantasista», que inventa verdades e comportamentos, igualitarismos superficiais e tolerâncias ocas.
Neste Ano Paulino será um bom exercício quaresmal ler devagar a carta aos Romanos. À entrada, convém colocar o aviso de Valéry: «Não entres aqui sem desejo».