Nos Evangelhos Jesus nunca se apresenta como sacerdote, nem designa os Apóstolos por esse nome. Jesus apresenta-se como «Mestre», como «Profeta» do Pai e de um novo Reino, faz apelo à conversão de pessoas moralmente honestas, afirma-se «Pastor» de um novo Povo, e envia os seus Apóstolos como «suas testemunhas», seus «amigos», e «pastores» com Ele. Paulo classifica-se a si mesmo como «servo» de Cristo, «apóstolo de Jesus», «testemunha do Evangelho». Só mais tarde, na carta aos Hebreus, é que se apresenta Jesus como sacerdote. Como se explica tudo isto: são ou não são sacerdotes?
A palavra sacerdote tinha no tempo de Jesus e de Paulo um sentido restrito e, por isso, tanto Jesus como os seus discípulos evitam usá-la, distanciando-se dessa estrutura.
Sacerdotes judaicos, Levitas e Templo
2 – Os sacerdotes eram, no mundo judaico, funcionários do Templo de Jerusalém. Formavam uma classe social com vários graus, havendo sempre um sacerdote máximo, o sumo-sacerdote. O sumo-sacerdote, como chefe do Sinédrio, era o verdadeiro representante de Israel diante dos romanos. Eram sumos-sacerdotes Anás e o genro Caifás. Anás fora nomeado sumo-sacerdote por Quirino, governador romano, e como tal aparece no julgamento de Jesus. Alcançou tal prestígio e aceitação que cinco de seus filhos, o genro Caifás e o neto Matias, foram todos sumos-sacerdotes. O segundo sacerdote na hierarquia era o comandante do Templo, devendo supervisionar a boa ordem do culto e garantir a segurança do Templo e dispunha de forças policiais. Vinha depois o grosso da coluna dos sacerdotes comuns. Era sacerdote o pai de S. João Baptista, casado com Isabel, sem filhos.
Os sacerdotes trabalhavam no Templo em dias e turnos fixos. Só uma minoria viva em Jerusalém e arredores. Os sacerdotes eram cerca de 7.200, divididos em 24 classes de 300 homens cada uma. O serviço no Templo era dividido por 50 sacerdotes em cada dia. Nesses dias hospedavam-se no Templo, e não bebiam álcool nem tinham relações sexuais. Os sacerdotes dirigiam a oração e ofereciam sacrifícios, ora queimando o incenso ora animais (rolas, pombas, cordeiros, vitelos), dos quais era retirada uma parte para eles. Os sacrifícios eram exclusivos do Templo, nas sinagogas praticava-se somente o culto da Palavra. Na Páscoa imolavam-se cerca de 18.000 cordeiros, centenas de sacrifícios diários, e, três vezes por ano, acudiam a Jerusalém 150 mil peregrinos. Além do culto, participavam nos julgamentos e na fiscalização da cura dos leprosos À volta do Templo circulava uma grande estrutura económica e social
Os levitas eram o grau inferior da classe sacerdotal, cerca de 9.200, divididos em 24 secções. Não presidiam ao culto e não deviam entrar na área dos sacerdotes. Asseguravam o serviço do canto e da música, e as tarefas de guardiães das portas do Templo. E, enquanto judeu, S. Barnabé, pertencia à tribo de Levi.
Compreende-se a razão da ordem dada por Jesus ao leproso por Ele curado para se ir mostrar ao sacerdote; o comportamento elitista do sacerdote que, perante o homem que descia de Jerusalém para Jericó e fora assaltado e deixado na estrada, passa ao lado para não se contaminar com um hipotético marginal; a ousadia de Jesus em atacar o Templo; e também o que significou económica e socialmente a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 por ordem de Tito, imperador romano.
Novo sacerdócio
3 – Jesus quis deixar bem claro, desde o início, que não vinha prolongar o judaismo, mesmo que melhorado, nem o sacerdócio judaico nem outras estruturas. Aliás, Jesus era da tribo de Judá, a mesma tribo do rei David, e Paulo era da tribo de Benjamim, e nunca poderiam ser sacerdotes do judaismo.
Jesus falou abertamente de um «vinho novo» que vinha trazer e que exige «odres novos», e o povo sentiu que a doutrina de Jesus era uma «doutrina nova», diferente do que era habitual. As próprias autoridades judaicas notaram desde o início que Jesus de Nazaré não se enquadrava no esquema judaico, e procuraram arrumá–Lo.
Compreende-se assim que Jesus nunca se afirmasse sacerdote nem atribuísse tal classificação aos seus Apóstolos. A palavra preferida de Jesus será sempre «pastor», termo que vinha da melhor tradição hebraica que designava os Hebreus como «rebanho do Senhor» e os seus responsáveis como «pastores de Israel».
O mesmo aconteceu com Paulo de Tarso, primeiro, perseguidor dos cristãos, e, depois, fervoroso apóstolo de Jesus e perseguido pelos sacerdotes judeus.
4 – Mesmo na última Ceia, em que Jesus instituiu o novo culto e mandou aos Apóstolos que o exerçam em seu nome, não usou a palavra «sacerdote» pelo perigo de confusão entre o culto antigo e o novo. Também Paulo designa os seus colaboradores como «servos» de Jesus, «ministros» do Evangelho. Só mais tarde, já depois de Jesus ressuscitado haver entrado na glória do Pai e após muitos anos de trabalho de Paulo, é que um cristão, discípulo de Paulo, escreveu uma longa carta, a carta aos Hebreus, classificando Jesus de «sacerdote», mas sacerdote «novo», que oferece um «nova» vítima, um «novo» cordeiro, autor da «nova Páscoa», fazendo uma comparação completa do antigo sacerdócio judaico com Jesus. As palavras «sacerdote, cordeiro, vítima» e outras próprias do culto religioso, são as mesmas do judaismo, mas o conteúdo delas é totalmente diferente.
Nas cartas a Timóteo, a Tito e aos Efésios, aparecem palavras novas para classificar os responsáveis das comunidades: presbítero, epíscopo ou bispo ou vigilante, e diácono. Tais palavras não têm directamente o sentido de sacerdotes, das de governantes e entre elas não há uma distinção rigorosa. A mesma pessoa chama-se ora presbítero ora bispo ora diácono. Depois da morte de S. Paulo, já no séc. II, é que a Igreja determinou com rigor o sentido de cada uma dessas palavras como hoje as tomamos: bispo, presbítero, diácono. Ao longo da história, a Igreja criou também os títulos de Cardeal, Arcebispo, Metropolita, Monsenhor, Cónego, mas estes são títulos honoríficas criadas tardiamente pela Igreja, os três primeiros para alguns bispos, e os outros dois para presbíteros. Fundamentais são aqueles três: bispo, presbítero e diácono, mas só o bispo e o presbítero são sacerdotes, isto é, só eles consagram.
A oferta é a vida
5 – No confronto do sacerdócio judaico e do sacerdócio cristão, o que é fundamental perceber é que o primeiro tinha o carácter de funcionário do Templo de Jerusalém, cumpridor nacional de ritos. Jesus não criou uma tal estrutura de culto, mas viveu a vida ao serviço do povo e da glória de Deus. Diremos que ofereceu a vida do dia a dia, e a Ele se pode aplicar a linguagem do culto: é o sacerdote da sua vida, é o templo, é a vítima e é o altar dessa oferta, que atingiu o ponto mais alto no Calvário. Na última Ceia Jesus institui um rito para exprimir a oferta da sua vida inteira em favor do mundo e da glória do Pai.
Deste modo, o cristianismo não tem um culto feito de coisas que funcionalmente se oferecem em vez da vida, mas há vidas que se gastam diariamente em união com Jesus Cristo para bem dos outros e para glória de Deus. Culto e vida diária são inseparáveis. «Não podemos ir para a Igreja de mãos vazias», diziam os antigos cristãos, e todos, mesmo o padre, têm de levar a vida pessoal para a assembleia do culto a fim de a unir a Jesus ressuscitado. No Missal, encontramos ao longo do ano muitas orações em que se pede abertamente que o Senhor aceite a nossa vida, e, em duas anáforas ou orações eucarísticas (oração que vai desde o Sanctus ao Pai Nosso) pede-se explicitamente «que o Espírito Santo faça de nós uma oferenda permanente» (3ª anáfora), «uma oferenda viva» (4ª anáfora). Sem esta consciência da oferta da vida pessoal em união com a vida de Jesus, cairemos numa espécie de culto judaico em que se oferecem coisas, flores, dinheiro, donativos para a igreja, para o padre e sacristão, quando a oferta cristã é a vida pessoal unida à de Jesus. «Ninguém ande a comprar rolas e pombas para substituir a vida».
6 – Ler comparativamente o livro do «Levítico» e a «carta aos Hebreus», pois a leitura contrastante ajuda a entender cada um dos sacerdócios. E isso ajudará compreender o grito de libertação de Paulo na carta aos Gálatas.