Judas ardeu à velocidade do fogo, transformou-se num insignificante e disforme amontoado de cinzas que, em breve, desaparecerá: levado pelo vento, para algures; arrastado, pela chuva, para a sargeta mais próxima ou, simplesmente, depositado no contentor do lixo, que pacientemente assistiu à execução do traidor.
Ainda as últimas chamas crepitam no carbono que resta pecador e já o local do auto de fé popular se encontra praticamente vazio. É certo que ainda se ouve um ou outro comentário, proferido pelos mais resistentes, acompanhado de estridentes gargalhadas, mas o bulício que ainda há pouco vestiu o sinistro cortejo, que percorreu as principais ruas da aldeia, esse esfumou-se! Foi uma procissão digna de se ver! O “malvado” ali, em carne e osso, devidamente deitado, em urna verdadeira e dignamente escoltado por guardiões de archote em riste. Não vá o mafarrico fugir!
Duas filas de archotes, erguidos por “devotos” trajados a rigor, abrem e iluminam o percurso. No ar misturado com o fumo, ecoam, a espaços, gritos e lamentações lancinantes, proferidos por carpideiros, que num paradoxo, a que ninguém dá qualquer relevo, choram a morte facínora, que todos pretendem, afinal, executar. O morto, que devia estar vivo, para poder ser queimado vivo, e sofrer assim, devidamente, pelos males que causou a toda a humanidade, ali vai, numa urna, devidamente deitado, “ mudo e quedo, conferindo o necessário caráter trágico-cómico ao evento. Facto indesmentível, e que ninguém ousa questionar, é o excelente desempenho por parte do “judas” de carne e osso, só ao alcance de um morto profissional: ali vai ele, devidamente deitado, em pose de estátua sacra, impecavelmente vestido, um autêntico “ janota”, exibindo o seu melhor fato, como qualquer defunto que se digne. A concentração é profunda, nem um músculo do corpo mexe, ao longo de todo o percurso (se excetuarmos o facto de a espaços “ beijar” uma garrafa que por milagre se encontrava dentro da urna) levando muitos a duvidar se tal façanha se deve a algum treino específico feito secretamente pelo ator, hipótese pouco credível, já que não se lhe reconhecem grandes dotes reflexivos, ou ao intenso diálogo que o mesmo encetou com Baco, na jantarada comum que precedeu o cortejo, hipótese bem mais credível, pois segundo consta, são amigos íntimos.
A meio do percurso, o macabro cortejo para. Faz-se silêncio, os ouvidos aguçam-se e, na face da multidão, desenha-se um misto de curiosidade e apreensão, pois do alto do improvisado púlpito vai ser lido, com a potência de um megafone, o testamento do hipócrita, do falso amigo: irão ser ditas verdades, mais ou menos cruas, mais ou menos embaraçosas, mais ou menos dolorosas, que atingem pessoas da terra, e todos, presentes e ausentes, são potenciais alvos: por serem da terra e por serem falíveis, isto é, pecadores! Os presentes, qual jurados de um competentíssimo tribunal popular, vão julgando o que ao vento é lançado, condenando, de forma mais ou menos efusiva os detratores: por norma a condenação é diretamente proporcional à intensidade das gargalhadas arrancadas e à quantidade de expressões vernáculas proferidas pelos “jurados”. Expõe-se o mal individual à comunidade para, perante a censura social, se exorcizar!
Lido o testamento, segue o cortejo até ao ato final, ao epílogo: pendurado, gozado, ridicularizado e açoitado, o falso amigo, a encarnação do Mal, o traidor de Cristo, Judas, agora miraculosamente, um simples boneco de palha, vai arder perante o delírio do povo! E num ápice tudo acaba em cinzas! O Mal ardeu à velocidade do fogo! O Velho ardeu para dar lugar ao Novo! O Judas ardeu, afinal, à velocidade da tradição!
No dia seguinte é dia de Páscoa, é dia da Ressureição de Jesus Cristo! É Dia de Aleluia!