Terça-feira, 3 de Dezembro de 2024
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República: Expulsão das Ordens Religiosas e extorsão dos seus bens

1 – Nestes primeiros dias de Novembro decorre em Lisboa um Congresso sobre a expulsão das Ordens Religiosas pela República, há cem anos. Recordemos esse facto histórico.

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No dia oito de Outubro, a República, proclamada no dia cinco anterior, deu o primeiro sinal da hostilidade legislativa à Igreja católica através de um decreto do ministro da Justiça, Afonso Costa (de seu nome completo Afonso Maria de Ligório Augusto Costa). Disse «hostilidade legislativa» porque a hostilidade real revelou-se logo no dia três de Outubro com o espancamento de dezenas de padres na rua por iniciativa da populaça.

O decreto do dia oito deu cobertura legal à perseguição pondo em vigor as leis de 3 de Setembro de 1759, de 18 de Agosto de 1767, de 28 de Maio de 1834, e anulando a lei de 18 de Abril de 1901. A lei de 1759, da autoria do Marquês de Pombal, prescrevia que «os Jesuítas fossem havidos por desnaturalizados e proscritos», e que «fossem obrigados a sair imediatamente do país e seus domínios para nele mais não poder entrar»; a lei de 18 de Agosto de 1767, também do Marquês, explicava e ampliava a lei anterior; a lei de 8 de Maio de 1834, de Joaquim António de Aguiar, o célebre «mata-frades», ministro de D. Luís I, extinguiu «em Portugal, Algarve, ilhas adjacentes e domínios portugueses, todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas religiosas de todas a ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, instituto ou regra»; o decreto de 18 de Abril de 1901, do governo de Hinze Ribeiro, que permitia a constituição de Congregações Religiosas em Portugal sob certas condições, foi anulado.

Ao abrigo dessa sua lei do dia oito, Afonso Costa mandou a polícia prender legalmente todos os padres que encontrasse na rua, o que levou à prisão dezenas de sacerdotes nos primeiros dias da República. No dia 22 de Outubro, por uma Portaria conjunta dos ministros do Interior e da Justiça, todos os funcionários dependentes dos dois ministérios (polícias, governadores civis, administradores do concelho, presidentes da Câmara e das juntas de freguesia, regedores, juízes e notários) são convocados a vigiar os padres nos seus sermões, declarações públicas, artigos na imprensa ou folhas paroquiais.

O espírito persecutório da lei do dia oito prosseguiria com disposições legais até 31 de Dezembro de 1910 e a lei da Separação em 1911. Um outro decreto de 31 de Dezembro desse ano de 1910 agravaria a situação dos religiosos, proibindo-os de ensinar ou exercer qualquer actividade relacionada com o ensino e, quanto aos Jesuítas, explicitava que a expulsão do país era por vinte anos.

2 – Para evitar ficarmos na linguagem abstracta acerca da expulsão dos religiosos, torna-se conveniente recordar que esses religiosos eram homens e mulheres de carne e osso. Repetiu-se em 1910 o espectáculo de 1834 que comovera o próprio Alexandre Herculano ao ver homens e mulheres, que haviam gasto as suas forças ao serviço da cultura e da assistência, andarem agora pela rua doentes e esfarrapados, ridicularizados e humilhados como réus de alta traição. «Pão para metade dos nossos sábios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdócio», escreveu ele em 1842. Só nos conventos masculinos havia, em 1834, 6.289 homens (sendo 5.69 professos, 591 irmãos leigos e 587 criados). Nos conventos femininos eram mais do dobro.

Da violência exercida sobre os Jesuítas em 1910, transcrevo algumas passagens de uma carta escrita e enviada de Madrid em 5 de Novembro de 1910 pelo respectivo Superior Geral em Portugal, P. Luís Gonzaga Cabral: «Em nome da liberdade arrebatam-nos tudo, apoderam-se das nossas propriedades e das nossas casas, umas lentamente construídas com as sobras das pensões dos nossos alunos à força de rigorosa administração e desinteressada economia, outras adquiridas pelos particulares com a própria legítima e legalmente averbadas em seus nomes individuais. Juntamente com os edifícios e as terras apropriam-se do recheio das nossas casas, nas quais havia colecções científicas de primeira ordem, como os museus, gabinetes e laboratórios dos Colégios de Campolide e São Fiel (…), as bibliotecas coleccionadas durante anos pelos mesmos processos, as rouparias onde estavam em lotes separados a roupa pertencente a cada um de nós, até os aposentos particulares onde, além dos modestíssimos leitos e lavatórios, só puderam encontrar a mesa de trabalho e a livrariazinha em que se alinhavam os companheiros silenciosos de horas roubadas à futilidade e até à honesta diversão. Tudo isso foi num momento declarado pertença do Estado e nós fomos levados entre soldados e populares armados, expostos às vaias e aos insultos de uma plebe amotinada de longa data pelas calúnias da mais repugnante imprensa. Eu mesmo saí de Portugal sem mais haveres que a roupa que vestia (oferta de um antigo aluno e uma esmola recebida de um anónimo), despojado da minha legítima paterna e materna, empregadas por mim em móveis e imóveis. Presos no quartel Artilhara 1, nem colher foi fornecida para comerem o rancho, e nos últimos dias ousaram introduzir lá dentro mulheres sem pudor que, perante a austeridade e dignidade dos presos, houveram de retirar-se. No calabouço do Governo civil amontoaram 23 homens num quarto onde não caberiam mais de três à vontade e, durante 5 dias, ali estiveram num ar infecto, não lhes sendo permitido sair em circunstância alguma».

3 – O Estado, que já se havia apoderado dos bens dos religiosos em 1759 e em 1834, apoderou-se em 1910 imediatamente de todos os bens móveis e imóveis dos Jesuítas. Acerca dos bens das outras Congregações religiosas, o Governo da República publicaria mais tarde legislação que conferiu ao Estado o direito de se tornar dono de todos os bens e de os distribuir pela clientela política e particulares. A República estendeu essa espoliação económica às paróquias, vendendo a maior parte dos passais. Em muitas paróquias ainda hoje se chamam «quinta do passal», «passal» ou «quinta da igreja» várias propriedades vizinhas da igreja e na posse de particulares.

Em Vila Real, o antigo convento franciscano continua quartel da GNR (A igreja do convento dedicada a S. Francisco foi entregue à diocese que, mais tarde, autorizaria a sua demolição «porque o estado de degradação era tal que a sua conservação era mais dispendiosa que construir uma nova», como se diz no relatório enviado a Roma a pedir autorização para a sua alienação; o dinheiro resultante da venda deveria ser empregue numa nova que viesse a construir-se na cidade, diz o rescrito pontifico que autoriza a demolição). Em Chaves, o convento franciscano é hoje património de um hotel particular,

4 – A extorsão económica dos bens das congregações religiosas e das paróquias em Portugal já tinha um precedente em Itália pela extinção violenta dos «Estados pontifícios», enormes extensões de terras que eram propriedade da Santa Sé, fruto das muitas dádivas dos fiéis ao longo dos séculos. Vista à distância de cem anos, a perda dos «Estados pontifícios» e, entre nós, a perda de alguns bens económicos, representou para a Igreja a libertação de enormes preocupações e problemas administrativos e sociais em que se via envolvida com prejuízo da sua tarefa pastoral. Isso, porém, não impede de sentir que aquele esbulho foi em si um roubo e um abuso. Deus escreve direito por linhas tortas, mas isso é obra da sua Providência que sabe ultrapassar as injustiças dos homens.

Para compensar as paróquias do esbulho dos seus bens e também para ter os padres na mão, a República criou em 1911 as «pensões» para os padres, mas essas pensões eram tão humilhantes que poucos padres as aceitaram: incluíam como beneficiárias as «viúvas» dos padres e os seus filhos mesmo nascidos de «outra mulher», e exigiam que se fizesse «em público» a avaliação de todos os bens do padre candidato à pensão! Dos vários milhares de padres existentes em Portugal, calcula-se que somente 800 terão aceite tais pensões em virtude de não terem nenhum outro rendimento.

Hoje, para sustento do clero, existe a «côngrua paroquial», uma quantia em dinheiro a entregar mensalmente ao pároco pela Fábrica Igreja Paroquial. Esta, por sua vez, deve cobrar dos chefes de família uma quantia correspondente ao salário de um dia para poder gerir a paróquia. Para evitar a acusação de «privilegiados», a Igreja aceitou, na recente Concordata de 2004, que os clérigos estejam sujeitos ao imposto do IRS, excluindo a Missa.

 

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