As mãos estão de tal forma barrentas que se confundem com uma peça à espera da cozedura, o ambiente animado pela música que toca na Rádio Armamar com o aparelho também ele coberto de barro de todas as vezes que Cesário Martins diminui o volume à chegada de clientes. Foi assim, sentados junto a uma roda de oleiro talvez mais antiga que o próprio artesão, e rodeados por pucarinhos, bilhas, panelas, assadores, que o vila-realense contou com tristeza à VTM que o Barro Negro “está a morrer”.
Com 79 anos, e quase 70 de dedicação à arte, o oleiro lembra-se bem da altura em que a terra onde “nasceu, cresceu e onde reside”, a aldeia Bisalhães, na freguesia de Mondrões, tinha dezenas de artesãos. “Hoje somos só quatro”, lamenta.
Apesar de prometer que vai “aguentar” até que a saúde o permita, o artesão adverte que os problemas de saúde da esposa, que já não o pode ajudar na arte, e também os seus problemas de coração, em breve vão exigir que deixe de fazer girar a roda onde nasceram milhares e milhares de peças.
A história de Cesário Martins repete-se entre os oleiros do barro negro vila-realense, artesãos já com bastante idade mas ainda movidos pela paixão à arte e, por isso, visivelmente tristes com a certeza de que quando já não puderem trabalhar mais levarão com eles um pedaço de tradição e cultura.
É exatamente para travar essa possibilidade, que a Câmara Municipal de Vila Real, com o apoio da Junta de Freguesia de Mondrões, da Associação Empresarial Nervir e da Direção Geral do Património Cultural, avançou com o processo de inscrição do Barro Preto de Bisalhães no Inventário Nacional do Património Cultural e Imaterial (INPCI), que foi concluído no dia 6, com a publicação em Diário da República.
“A inscrição do Barro Preto de Bisalhães no INPCI teve como objetivo preservar e divulgar o seu processo de confeção, segundo uma técnica ancestral e com enorme significado e relevância dos pontos de vista antropológico e etnográfico”, explicou a autarquia.
Rui Santos, presidente da Câmara, sublinhou que “se trata, também, de uma forma de reconhecimento e homenagem à comunidade de oleiros de Bisalhães pelo trabalho que ao longo de séculos e de muitas gerações tem vindo a desenvolver na atividade de confeção do barro, que se tornou numa marca da cidade e da região”.
O autarca realçou ainda que “a inscrição da Confeção do Barro de Bisalhães no INPCI é a primeira de toda a região Norte do país”, sendo também “o primeiro registo cultural de âmbito produtivo (onde prevalece o fator do trabalho humano) a ser incluído no inventário nacional”.
“Até à presente data, os eventos registados (capeia raiana, Kola San Jon e danças tradicionais da Lousa) são de natureza lúdica. Este fator torna o processo de preservação muito mais complexo e sensível, pois obriga o município e todas as instituições e pessoas envolvidas no trabalho de salvaguarda da técnica de produção das peças em barro a ter em conta as especificidades desta atividade”, advertiu o mesmo responsável, reconhecendo que, “à partida, será mais complexo motivar as pessoas (e principalmente as novas gerações) para a preservação desta atividade que é um trabalho que passa por etapas de alguma dificuldade física, do que incentivá-las à preservação de eventos de natureza lúdica”.
Confrontado com o futuro previsto pelos próprios oleiros, mais exatamente a possibilidade da arte vir a desaparecer, Rui Santos mostrou-se empenhado em evitar que isso aconteça e, sem querer levantar o véu sobre os passos seguintes, deixou a certeza que novos projetos estão na calha. “Tenhamos engenho, arte e sorte para irmos mais além nesse objetivo”, exortou.
A história do Barro Negro começa em Chaves
O processo produtivo de cada uma das peças começa com a compra do barro, que há décadas é garantido por uma empresa de Chaves, que vende a matéria-prima a todos os oleiros vila-realenses.
“O barro não é tão forte como era o nosso (antes comprado em Parada de Cunhos), mas temos que nos remediar”, explica Cesário Martins, revelando que antes de chegar à roda, este ainda tem que ser posto a secar, picado e peneirado.
Depois de misturada com água, a argila passa então a estar em condições para ser moldada, nascendo assim das mãos rudes mais habilidosas dos oleiros peças únicas, algumas pensadas para o dia-a-dia, como as panelas, as canecas e as assadeiras, e outras, a chamada “louça fina”, para decoração, como por exemplo as bilhas de segredo e de rosca, os vasos de argolas, os pucarinhos (miniaturas) ou as pichorras.
Depois de horas de cozedura, num forno alimentado por “lenha, giestas, carqueja e rama seca e rama verde”, as peças ficam finalmente prontas para serem vendidas.
Antes a comercialização feita em feiras e na beira da estrada, no entanto, desde há mais de 20 anos que os oleiros têm um espaço de venda à entrada de Vila Real, estruturas que inicialmente eram feitas de madeira pelos próprios oleiros mas que depois foram substituídas pela autarquia por abrigos com melhores condições.