Em primeiro lugar, reconhecer que a Bíblia não é livro fácil e imediatamente acessível a toda a gente. E por duas razões principais: não tem a sequência de um folhetim que torne a sua leitura apetecível como as telenovelas, e a sua mensagem não é transmitida ao jeito da cartilha com pergunta e resposta. A Bíblia é a história dramática da Humanidade na sua relação com Deus e do amor de Deus à Humanidade, história contada em textos historicamente separados mas ligados por um fio intencional e com recursos da cultura semita. Dizer, por exemplo, que a mulher foi formada da costela do homem não pretende ser uma afirmação científica sobre as origens da mulher mas sobre a antropologia: o «lado», a afectividade, o paralelismo com o homem, igual e diferente; as figuras de Caim e Abel representam as culturas agrícolas e nómadas com preferência para a segunda, em tensão permanente que Deus reprova assinalando o criminoso com um sinal de protecção; dizer que alguns patriarcas duraram centenas de anos significa somente que «viveram plenamente os anos da sua vida», e multiplicar 70 por 7 não significa 490 mas «sempre».
Por tudo isso – a não sequência histórica do texto e a dificuldade de captar a mensagem religiosa – a Igreja durante séculos não estimulou a leitura indiscriminada da Bíblia. Depois do Concílio, vem a insistir na necessidade de iniciar os cristãos no uso piedoso da Bíblia.
2 – A assimilação do génio da Bíblia leva tempo, como aliás a de qualquer grande obra artística. Recordo perfeitamente os anos da minha juventude em que preferia a leitura de uma antologia bíblica com os textos paralelos do Antigo e do Novo Testamento ao texto directo, por haver nele muita coisa que eu não entendia. Comprei na altura uma série de livros sobre «páginas difíceis da Bíblia», que respondiam à questão do uso dos números, das matanças, dos milagres enormes, dos maus comportamentos dos reis. Mais tarde, fizeram-me perceber a força da língua hebraica e grega (as línguas originais da Bíblia), e a Bíblia tornou-se mais luminosa. Pela iniciação à literatura das epopeias dos povos – a Eneida para os romanos, a Ilíada e a Odisseia para os gregos, o D.Quixote de la Mancha para os espanhóis, e os Lusíadas para Portugal, percebi que a Bíblia é a epopeia religiosa da Humanidade com os seus símbolos de pessoas e coisas. Se compararmos a Bíblia com os Lusíadas, notamos que este poema, para contar a história de Portugal, recorre a estruturas simbólicas, tais como o concílio dos deuses do Olimpo, o Cabo das Tormentas, o Adamastor, o Velho do Restelo, o bom humor cavalheiresco de Fernão Veloso, a aventura do Magriço, a Ilha dos amores, tudo em redor da viagem de Vasco da Gama. De modo análogo, a Bíblia, para falar do amor de Deus ao mundo, utiliza uma linguagem de símbolos, guerras, heróis, números, casamentos e alianças. Lembremos o poema da Criação, a parábola de Abel e de Caim, a arca de Noé, o episódio da «luta de Jacob com o Anjo», símbolo da luta interior de todos os convertidos e de todos os santos, a travessia do deserto, o texto de Isaías, as visões de Ezequiel, o Cântico dos cânticos, o livro de Job, o arco-íris dos salmos, a subtileza da parábola do filho pródigo e de outras, a epopeia do Apocalipse.
3 – Quando apareceu o livro de Saramago viu-se logo que ele não queria conhecer a Bíblia, nem literária nem religiosamente. Seleccionou habilidosamente da Bíblia algumas passagens para a acusar de deseducadora, e, em termos rudes, faz afirmações ímpias. Usa a Bíblia como lhe convém, desprezando antropomorfismos literários, imagens e símbolos. Por isso, ouviu-se chamar a Saramago um ignorante e até um cretino. Prefiro dizer que é um gesto «amarotado», pois sabe que está a ler a Bíblia como ninguém lê, só para levar a água ao moinho do seu ateísmo.
No estilo de ideólogo senhor de tudo, Saramago diz não querer teólogos em cima de cada linha da Bíblia, mas unicamente o texto tal qual está escrito. Chama-se a isto cegueira literária, como se a Bíblia fosse um livro de contas de merceeiro. Fixar-se em cenas de guerra, em diálogos amorosos, recursos de sedução feminina para fazer uma diatribe contra os maus costumes, é um gesto semelhante ao de uma avó que, ao pegar nos Lusíadas, acusasse o livro de pornográfico por causa do canto IX da ilha dos amores! Ou então como o veterinário que, perante os animais sacrificados no culto arcaico e em Jerusalém, viesse em defesa da bicharada! Nem um adolescente imberbe, ao abrir a Bíblia, vai fixar-se em cenas violentas (usadas, aliás, como meio de salientar a misericórdia de Deus que «liberta e eleva»).
Se lêssemos desse modo primário o seu livro «Ensaio sobre a cegueira» reduzi-lo-íamos a um livro fedorento e cheio de excrementos humanos, em vez de ver aí uma metáfora da histórica degradação do homem no nazismo, no estalinismo e no consumismo: apesar de ter os neurónios saudáveis, os homens nada vêem além dos números «é o que está escrito». Naturalmente pergunta-se se essa atitude de panfletário se coaduna com a de escritor detentor de um prémio Nobel: ainda que descrente, não pode fazer leituras como lhe apetece. Isso é para leitores primários.
A investida de Saramago contra a Bíblia faz lembrar a de Sansão contra os filisteus. A dada altura chamou em sua defesa a mulher que o acompanha, como uma nova Dalila dos filisteus, que, desta vez, acaricia a calvície do gigante para o estimular à guerra. Mas agora as colunas do templo de Dagon não partiram e o Sansão anda por aí a justificar o fracasso do espectáculo. Ainda bem que aceitou dialogar em público com biblistas. (Também mereceria uma reflexão o facto, já verificado com o «Código da Vinci», de ver pessoas pressurosas a comprar qualquer texto que cheire a anti-religião, quais pintainhos atrás da minhoca cacarejada, mas isso é outra conversa).
4 – Para nós, transmontanos, é inevitável a aproximação deste episódio com Miguel Torga, um escritor também rebelde ao catolicismo e que recorre abundantemente à Bíblia. Não tem intuitos catequéticos, mas a diferença é enorme! Torga deixa em paz o mistério interior da Bíblia e, como abelha virgileana e médico cirurgião, capta o pólen de alguns episódios e recorta em figuras bíblicas mais sombrias os dramas agónicos da existência humana, e, a partir daí, constrói a sua obra: o drama de Job, as Lamentações de Jeremias, a figura de Lázaro, as penas do Purgatório, a Madalena da arca de Noé dos seus Bichos, e o recurso permanente às palavras acramentais da Bíblia (água, óleo, vinho, fogo, sarça, geena, limbo, transfiguração, santa unção, e outras) convertidas semanticamente em sinais do seu telurismo. O próprio título «A Criação do Mundo» transporta a grandeza cósmica do Génesis para suporte da sua autobiografia. É uma agressão à Bíblia? Não: é o respeito pela Bíblia e a subtileza de artista. Repare-se na delicadeza com que fala de Jesus Cristo no conto de Natal situado na capela da Senhora da Azinheira em S.Martinho de Anta. Ao colocar as figuras do presépio, o mendigo M.Torga vai monologando: «a Senhora faz de mãe, o Menino de quem é, e eu, ainda que indigno, faço de S.José». Aquele inciso de «o Menino faz de quem é» é um monumento: não esclarece se Jesus é um simples menino ou se insinua que seja Deus. Deixa isso ao leitor!
Durante o Ano Paulino, que decorreu no ano de 2008, algumas paróquias tentaram iniciar os cristãos na leitura da Bíblia, nuns casos com êxito, noutros com desilusão: a sensibilidade religiosa é frágil e a iliteracia de jovens e adultos é enorme. Este episódio atesta a necessidade de prosseguir aquele esforço.