Percurso
Nasci a 23 de abril de 1943, na aldeia de Dadim, freguesia de Cimo de Vila da Castanheria, concelho de Chaves. Frequentei o Seminário de Vila Real, entre 1955 e 1967, e fui ordenado sacerdote em 1967, no dia 15 de agosto, por D. António Cardoso Cunha. Depois da ordenação estive um mês a ajudar em Chaves e no dia 15 de outubro de 1967 cheguei a Roma para frequentar Pontifícia Universidade Gregoriana, a universidade dos Jesuítas, e lá fiz a licenciatura em Teologia Dalmática (até junho de 1969). Fui para o Seminário de Lamego ensinar Teologia e depois vim para Vila Real até 1971, onde fui director espiritual do Seminário e professor no Liceu. A seguir fui cinco anos para o Porto, onde fui professor no Seminário e no Instituto de Ciências Humanas e Teológicas, e lá me mantive até 76. Em outubro desse ano voltei a Roma mandado pelo senhor D. António Cardoso Cunha, para estudar Sagrada Escritura, um curso no Pontifício Instituto Bíblico. Em 1980 fui nomeado vice reitor do Pontifício Colégio Português. Em 1982, com a saída do reitor, D. Teodóro de Faria, Bispo Emérito do Funchal, fiquei como reitor e lá fiquei 20 anos, até 2002, quando fui ordenado bispo em seis janeiro, pelo Papa João Paulo II, na basílica de São Pedro. Fui enviado como bispo auxiliar para Évora, onde estive até 2008. Em 2011 com a saída de D. Joaquim, que passou a emérito, passei de bispo de coadjutor a titular, no dia 17 de maio de 2011.
Voltei a casa depois de 40 anos de uma vida viajada.
Em que momento sentiu a vocação?
É muito difícil dizer-se em que momento sentimos a vocação. A vida é um tecido vivo. Nasci numa aldeia pequenina, tinha um sacerdote meu familiar, de forma que olhando para os padres e fui ganhando um certo gosto. Mandaram-me para o seminário mas é evidente que a vocação vamos assumindo com naturalidade. No seminário éramos quase 70 e a maior parte saiu, eu fui tomando gosto, fui ficando e não me arrependo de forma nenhuma do sim que dei a Nosso Senhor.
Disse recentemente que existe uma crise na família e uma crise de valores na sociedade. A que se deve essa situação e como pode ser invertida?
Existe uma crise de valores que é óbvia. Falamos muitas vezes na palavra crise, uma palavra de origem grega que significa julgamento e avaliação. Nós estamos num período em que a palavra crise toma-se apenas no seu aspeto negativo, mas ela tem um aspeto positivo, significa avaliação e discernimento. Há um mal-estar económico que subjacente tem uma crise de valores no sentido que faltam adesões a valores fundamentais da vida humana. Não vale tudo, não se pode nem se deve fazer tudo. Temos que agir segundo aos ditames da reta e bem formada consciência e cada um deve colocar a sua própria vida ao serviço, na solidariedade. A sociedade em que vivemos hoje é terrivelmente egoísta, é terrivelmente indiferente. O Papa nos alertou para este perigo, para a indiferença que o mundo assiste perante tragédias terríveis. As pessoas vivem centradas em si mesmas, falta comunicação, diálogo, solidariedade. Apesar de estarmos num mundo global, exposto, onde se viaja muito e há comunicação em tempo real, as pessoas são muito pouco abertas umas às outras. Antigamente as pessoas viviam em ambientes fechados, protegidas, à sombra do campanário, no fontanário da aldeia, não saiam dali, mas eram mais solidárias. Conheciam-se todas, não eram anónimas como nas grandes cidades, e ajudavam-se. Isso é uma constante da vida moderna, que tem as suas coisas boas, mas também tem os seus limites e os seus males.
O Papa convida-nos a sair de nós próprios, a irmos ao encontro do outro, a estabelecer relações, a não ignorarmos os pobres.
É preciso sensibilizar?
É preciso e é um dever. Precisamos de apregoar o sentido da dignidade humana, o respeito que devemos aos demais. Temos que o sublinhar, essa é a missão da Igreja. O homem é a via da Igreja, como disse um grande Papa, Paulo VI. Temos que nos centrar na pessoa humana, na valorização pessoal, na solidariedade, na comunhão. Cada vez mais a globalização que assistimos, deve se tornar uma globalização solidária.
Na diocese de Vila Real o próximo triénio vai ser dedicado à valorização da família e ao matrimónio…
Pertence ao nosso Plano Pastoral, que está programado para três anos e que vem na sequência dos anos anteriores, dedicados à nova evangelização, à evangelização do mundo. A Igreja é mediatária e foi instituída por Cristo para levar o evangelho da salvação à toda a parte. “Ide pelo mundo fazei discípulos, batizai, ensinai, o que Vos disse comunicai aos outros”. Portanto temos esse dever de comunicar. É preciso que a mensagem Cristã se espalhe, fundamentalmente através da Família, que é a célula mãe da sociedade, a Igreja doméstica onde tudo começa. A Família, em virtude de vários fatores, hoje também abdicou da sua função. Temos famílias que se empenham pouco na missão altamente educativa, que é a sua missão primordial. A missão da educação dos próprios filhos pertence aos pais e só secundariamente à Igreja e ao Estado e à sociedade em geral. Um apelo que devemos fazer é que a Família seja o que deve ser.
Em setembro um grupo de padres da região do Douro deu a voz pela população duriense, pelos viticultores, que estão a passar por momentos de grandes dificuldades. É preciso que também a Igreja sensibilize o Governo?
A Igreja somos todos. A Igreja é o conjunto dos batizados, homens e mulheres. Pessoas humanas em comunhão com as três pessoas divinas. É preciso, de uma vez por todas, termos essa noção. A Igreja não é o Papa, nem os bispos, isso seria um monstro. A Igreja somos todos. Todos temos o dever de anunciar e denunciar. O cristianismo é portador do anúncio do Salvador, que é o filho de Deus que se fez um de nós, que nasceu de Maria, que fez o bem, morreu por nós que ressuscitou. Mas também é a denúncia do pecado, das injustiças, do desrespeito da dignidade humana. A doutrina social da Igreja comporta isso, comporta o reconhecimento da dignidade humana, da verdade como valor para todos. O Papa João XXIII, que foi beatificado, escreveu, na quinta-feira santa de 1962, uma célebre encíclica chamada “Paz na Terra”, dirigida a todos os povos e chamando para o valor da paz universal. Mas a paz só assenta verdadeiramente nos valores da verdade, da justiça, da liberdade e da solidariedade. São quatro pilares em que paz deve assentar. Esse grupo de padres clamando contra as injustiças o fazem muito bem. É a denúncia profética. Devemos continuar a fazer com respeito mas com coragem, sem papas na língua, quando é necessário dizer as coisas dizemos. As pessoas não são números, merecem o nosso respeito e os bens de todo o mundo que Deus criou são para as pessoas.
Recentemente foi criada no seio da diocese uma estrutura dedicada especialmente ao apoio social e cujo objetivo é também promover o trabalho em rede entre as associações que trabalham na área da solidariedade…
A Igreja é caridade. Esta nova estrutura nasce para melhorar a coordenação do exercício da caridade. Há vários movimentos e iniciativas sociais (como a Cáritas e as Conferências de São Vicente de Paula) e pode acontecer uma duplicação de apoios às mesmas famílias. Devemos procurar conhecer, no local, diretamente as pessoas que precisam, racionalizar o trabalho e coordenar esforços. Em Trás-os-Montes e no interior somos muito atreitos ao individualismo e ao bairrismo. Mas temos que andar de mãos dadas. Trabalhamos para a mesma causa, servimos todos as mesmas pessoas humanas.
Até porque as necessidades são cada vez maiores.
Exatamente. E por isso mesmo eu fiquei contente que a Câmara tivesse cedido uma antiga escola, a Carvalho Araújo, onde a Cáritas atende algumas pessoas. A Cáritas tem uma quinta muito longe e precisa mesmo de um espaço no centro da cidade para casos de ajuda imediata.
A Diocese tem algum projeto de recuperação do Seminário?
O Seminário precisaria de uma grande intervenção. A sua construção começou com o primeiro bispo da diocese, o D. João Evangelista Lima Vidal, que esteve cá até ao princípio dos anos 30 e depois foi para Aveiro. Ele teve logo o sonho do seminário. Quando a Diocese foi fundada, no dia 20 de abril de 1922, havia um pequenino que pertencia a Braga, em Gralhas, uma aldeia perto de Montalegre, e havia o pequeno seminário Salesiano em Poiares. O bispo entendeu que a cidade capital da diocese, Vila Real, devia ter um seminário e lançou mãos a obra. A face sul, voltada para os correios, foi iniciada por ele. D. António Valente da Fonseca continuou essa obra, que foi ultimada em 1952. É um edifício muito grande, com o estilo dos anos 30 e paredes muito altas. Já foi um pouco adaptado, e precisa de ser utilizado. Até porque os seminaristas que temos agora frequentam as escolas públicas até ao 12º ano, inclusive, depois seguem para o Porto para estudar Filosofia e Teologia, na Universidade Católica. É uma construção monstruosa quando precisaríamos de edifícios mais pequenos, mais adaptados à missão de educar, mas temos que viver com o que temos. Ele foi feito com muito sacrifício e nós estamos a tentar requalifica-lo. Muitas coisas foram feitas (substituímos janelas, fizemos alguns quartos com mais conforto, com casa de banho privativa) mas ainda há muito a fazer. O seminário deve servir outras causas. Por exemplo, temos um auditório que é aberto ao público.
D. Joaquim Gonçalves tinha um sonho, ter um convento na Diocese. Esse sonho mantem-se?
Ele tinha esse sonho de ter na diocese um convento de uma congregação contemplativa. Em Vila Real temos quatro congregações masculinas e 10 femininas, mas todas elas congregações ativas. Uma congregação contemplativa como tem Braga, Porto, Aveiro, Fátima, Coimbra, Algarve e Lisboa, não tínhamos. Atualmente temos um conjunto pequeno de irmãs claustradas que sonham com um convento. Entretanto arranjei uma casa que estava devoluta, nas imediações de Chaves, que era de uma congregação que deixou de estar representada na diocese. O sonho está em evolução, mas eu também ficaria contente se tivéssemos uma congregação contemplativa, porque temos que aliar a ação à oração.
A Igreja Católica vive um processo de transformação que muito se deve ao carisma do Papa Francisco. Com vê a figura máxima da igreja e seu o impacto mundial?
Este Papa é extraordinário. É um Jesuíta que tem uma vida pastoral, porque viveu como pastor na Argentina, é arcebispo em Buenos Aires, e por isso tem um passado que o preparou. Tem o passado de um homem pastoral, próximo, que apela a certas reformas que são necessárias fazer. Isso vai no encalce de tudo aquilo que os Papas anteriores já tinham começado. A Igreja é assistida pelo Espírito Santo e Deus vai dando a sua Igreja os Papas de que precisa em cada época.
Um papa desta natureza é um sinal positivo de esperança para a Igreja. Nós formulamos votos para que o seu pontificado progrida neste rumo para nos tornarmos mais sensíveis aos outros e proporcionarmos aos homens a caridade de Cristo.
Tendo em conta ligação do título à diocese, através das Conferências de São Vicente de Paula, o que espera do Jornal A Voz de Trás-os-Montes?
Espero que seja uma casa comum para todos os transmontanos. Que seja a expressão de todos e para todos. Que não fique enviesado, circunscrito. Que seja um espaço aberto dentro do respeito, do pluralismo e fiel a matriz cristã. Respeitar a verdade, a justiça, a liberdade e a solidariedade, que são os quatro pilares para a criação da paz.
Uma mensagem aos vila-realenses…
Queria desejar a todos os diocesanos, a todos os irmãos e irmãs desta querida diocese de Vila Real, um Santo e Feliz Natal e um ano novo cheio de bênçãos do Deus Menino. Que Ele nos ajude a fazermos bem a nós próprios. Eu recordo o nosso grande Santo, São João de Deus, que nas ruas de Granada gritava “irmãos fazei bem a vós mesmos”. É fazendo o bem que nos sentimos automaticamente recompensados e felizes. Que Deus ajude a todos e que nos dê um ano novo de paz, concórdia, reconciliação e de proximidade aos irmãos necessitados.
“A diocese de Vila Real representa, quando muito, duas paróquias de Lisboa.”
Desde há alguns anos que se fala muito, não só em Vila Real mas em todo o país, da falta de vocações. Qual é a realidade da diocese?
A vocação é um chamamento de Deus e como tal é proposto a todo o batizado, que, como cristão, é chamado a anunciar o evangelho de Jesus Cristo, a testemunha-lo com palavras e obras, com a coerência da vida e com a ousadia, a coragem, da palavra. O meu título de glória é o ser cristão, não é ser padre ou bispo, é o ser cristão. O resto vem por acréscimo. É um serviço que se presta à comunidade, cada um de acordo com o chamamento que recebe e as capacidades e possibilidades que tem, quer sejam sacerdotes, diáconos, acólitos, catequistas, ministros da comunhão. Estes podem ser presentes de assembleias litúrgicas onde não haja um padre. Portalegre é uma diocese estruturalmente pobre, do interior, como a nossa, tem poucos padres e que por isso instituiu alguns leigos com o poder de presidir aos funerais. Em Vila Real ainda não chegamos a esse ponto, ainda temos os nossos padres nos funerais, mas qualquer dia poderemos não ter. A grande tragédia do interior de Portugal é o despovoamento, é a hemorragia populacional que se verifica desde 1960. Desde essa altura que o interior tem perdido população e a nossa diocese não fica atrás. Deveríamos segurar essa população mas não há meio, portanto precisamos apostar em vocações laicais, vocações para ministérios pastorais, exercidos por leigos e leigas. Apesar de ainda termos muitos sacerdotes, a nossa diocese é muito dispersa. Temos paróquias com 10 ou 20 pessoas. A diocese de Vila Real representa, quando muito, duas paróquias de Lisboa. Essa dispersão obriga os padres a multiplicar missas, que também fazem as vezes à pressa, sem evangelização. Precisamos de mais evangelização, mais esclarecimento, educação e catequese, e talvez menos sacramentalização. Se estamos a dar sacramentos sem as pessoas saberem o que representa é inútil. O que é preciso é trabalhar o coração.